[Data da primeira publicação: 14 de Novembro de 2003]
Oh Toneca, viste o topázio?
Querida mana,
Estava aqui a pensar na nossa família como quem passa as tropas em revista. De repente, apareceram-me todos à frente, os mortos e os vivos, encheram o peito de ar e perfilaram-se numa longa fila. Que heterogeneidade! Os mais simples, os mais complexos, os mais generosos, os mais extrovertidos, os mais preocupados, os mais tímidos, os mais baixos, os mais altos, os mais magros, os mais gordos e todos, sem excepção, com a marca indelével do amor que lhes tenho. Do amor que lhes temos. Enquanto os percorria, um a um, na minha mente, demorava-me um pouco em cada um e atirava-lhe um sorriso como que a dizer “conheço-te bem!”. Decidi, por razões que agora não vêm ao caso, parar junto de um tio nosso e conversar com ele. Sabes, há pessoas que nascem simpáticas, vivem simpáticas, e não sabem estar de outra maneira senão simpaticamente.

Não quis Deus que este nosso tio viesse grande nos tamanhos físicos, mas quis que trouxesse consigo um coração que quase lhe não cabe no peito. É uma pessoa a aproximar-se e ele a dizer de braços abertos e olhos brilhantes “então, rapaz?!”. E aquela expressão vem sempre marcada de uma comunhão inexcedível, de um querer saber para fazer bem, de um sentir grande do tamanho do mundo como se dele fossemos filhos também. Tem pela vida um respeito extremo mas não a teme. Encara-a sempre com aquela disposição natural de quem quer seguir em frente, de quem sabe que se não pode parar, de quem quer tirar dela o melhor que ela tiver para dar.
Nos dias que vivemos, de tão soturnos e cinzentos contornos, e em que os seres humanos parecem estar a enveredar pelas opções complexas e complicadas da vida, venho admirar contigo a simplicidade com que o tio Toneca a doma. É quase como quem a orienta, amparando-a, mas a não agarra à força na ânsia de a dominar e controlar e, no entanto, controla-a. É um saber invejável este. É o saber viver deixando viver, é o saber respeitar ganhando assim o direito ao respeito. Quase parece simples, quase parece fácil. E depois, surpreende-me, por entre as dificuldades e as partidas que o destino lhe tinha reservadas, a alegria, o peito feito para mais uma história, para mais um sorriso. A simpatia. Parece-me mesmo que se um dia o tio Toneca quisesse ser antipático ou indelicado não o conseguiria. Há nele uma força que lhe sobrevém a todas as outras e essa impele-o a uma delicadeza, a um gesto cortês, a uma atitude conciliadora, a optar pelas coisas simples e bonitas do quotidiano. No outro dia, estivemos com ele e, terminada a visita, fiquei orgulhoso por ter um tio assim. Pensei nas semelhanças com o pai. Não nas mais evidentes, claro, essas saltam à vista: as mãos, a careca, a face… mas nas outras. Na força que se impõe pela serenidade, no coração grande de querer ver todos bem, no procurar uma solução que a todos agrade. E fico-me a pensar se não será ele o que temos de vivo e pulsante mais próximo do que seria o pai? Por vezes ainda me lembro das brincadeiras que tinham juntos. Tudo se resumia a jogos de palavras que resultavam de um passeio, de um piquenique, de um dia de farnel às costas, pinheiros verdes, dedos entalados nas portas e outras histórias que ficavam para contar. Tudo prometia um sorriso, tudo evocava um pensamento malandreco e divertiam-se assim, os irmãos, a brincar com as palavras. Fosse porque uma certa terra se chamava Mesão Frio, fosse porque num certo cruzamento e perante um sinal de STOP a tia Hilda advertira “Oh Toneca, viste o topázio?”.
Tiravam da vida tudo o que ela permitia e não pediam mais estes sábios de saber viver com o que se tem, sem pensar no que se não tem, sem saber nem querer saber como seria se se tivesse mais… só viver-se assim, simples, fácil e descomprometidamente com o que os rodeia, com os braços abertos, os olhos brilhantes e com simpatia… uma desconcertante e acolhedora simpatia: “então, rapaz?!”
Beijo
Mano