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A neblina que há uns dias lhe toldava o olhar e o pensamento foi-se desvanecendo aos poucos e na medida exacta da compreensão dos seus actos e da amplitude das consequências deles. Está tranquilo e tem no olhar essa calma e essa serenidade que invadem os homens que encontraram em si a solução para os problemas por si causados. Já não é tempo de tragédia que tragédia foi o desmoronar das vidas que o rodeavam. Já não é tempo de sentir-se encurralado nem envergonhado porque encontrou, já, a saída e a forma de resgatar a sua honra e a sua dignidade.
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Volta as costas à janela por onde olhava a rua sem a ver, só para entreter a vista enquanto pensava, e dirige-se para este sofá de um lugar só. É aqui que costuma ler. É aqui que costuma entregar-se ao pensamento e à televisão, agora desligada, e é aqui que tantas vezes costuma adormecer. Enterra-se no sofá e deixa-se absorver pelo seu conforto como se nada mais houvesse na vida que valesse a pena ser vivido.
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A convidada da noite entrou na casa. Veio silenciosa e fria. Não necessitou bater à porta nem que lha abrissem e não quis ser apresentada. Nem precisava. A esta casa não veio porque assim o tivesse decidido. Veio porque fora convidada.
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Este homem que aqui vemos enterrado no seu sofá, no universo da sua sala e da sua intimidade tem um braço sobre o colo e o outro descaído e abandonado para fora da poltrona. Adormeceu, já, pela última vez e dentro de momentos estará frio.
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Ao lado do sofá confortável está uma mesinha de chá e em cima dela um frasco de comprimidos vazio do seu conteúdo. O frasco não está tombado, nem há comprimidos derramados o que pode induzir leituras diversas sendo a mais segura a convicção dos gestos de quem os praticou. Aqui há-de chegar um homem diplomado de médico e há-de escrever o óbito e a causa dele. E aí figurará a morte causada por ingestão indevida e excessiva de um químico não prescrito e cuja identificação em nada acrescenta a esta estória. Nada mais errado que andamos nós, pequenos humanos, atribuindo aos instrumentos as causas sendo estas de outra ordem. Mais certo estaria o médico que escrevesse no óbito Este homem morreu de amar e não ser amado, morreu de desgosto pungente, agonizou em desespero e vergonha pelos seus actos. Mas vemos isto, sabemos isto e continuamos a dizer que a causa da morte foram os comprimidos, o veneno, o laço na corda, no cinto, a ponta da faca, o comboio que passava... e teimamos no erro e sempre que o fazemos perdemos uma oportunidade de tentar perceber onde radica a causa. Que solidão é esta que nos traz morrendo a vida mergulhados em desespero?!
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Os serviços fúnebres terminaram há momentos. O cemitério encontra-se quase deserto de lágrimas e sussuros. Restam alguns amigos mais íntimos que vão encolhendo os ombros, enfiando as mãos nos bolsos das calças e afastando-se lentamente do local onde o deixaram, só, para a eternidade. Outros abanam as cabeças em sinal negativo como que dizendo que não à inevitabilidade da morte. Junto à sepultura recente restam duas silhuetas femininas, de negro vestidas. Uma mulher informou outra e as duas estiveram presentes e aqui estão olhando o chão. Não se falaram que nada havia para dizer. Vieram ambas retribuir crisântemos. Flores que ele oferecia para as fazer sorrir e que agora marcam a sua despedida em silêncio. Tem este estranho poder a morte que é o de separar os mortos dos vivos e unir os vivos aos vivos. É como se o seu peso e a sua força exigisse que sejamos mais do que a nossa individualidade para podermos enfrentá-la.
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Lá fora, José António espera no carro e quando ela chega e entra na viatura, ele faz-lhe uma festa terna na face e beija-a suavemente nos lábios.
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- Gostavas muito deste teu amigo...
- Muito! Mesmo muito. Posso mesmo dizer que foi mais do que um amigo.