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Acontece, pois, outra particularidade que andamos observando no comportamento dos humanos que é conseguirem adiar as coisas importantes e os importantes gestos e viverem presos dos pequenos, incapazes de os adiar. Adia-se a solidariedade. Não se adia uma reunião importantíssima de condóminos. Adia-se a educação. Não se adia a inadiável visita ao centro comercial. Adia-se o pensar. Não se adia o comer. Adia-se o ser. Não se adia o existir. E foi por via de um inadiável pequeno-almoço que ela entrou na pastelaria. Daquelas tradicionais, com o balcão envidraçado de forma arredondada, máquina de café com dourados, mesas diversas, empregadas com uma bata às risquinhas verticais brancas e cor-de-rosa e um enorme vidro com três mesinhas de dois lugares a permitir uma bica e um pastel de nata acompanhados da luz e da vista para o passar urbano das gentes. Nenhuma das três mesas estava ocupada, tão jovem era o dia e fresca a manhã. Ela sentou-se na mesinha mais distante da porta e nem sequer foi para evitar o frio do abre-e-fecha. Foi só para distanciar-se um pouco mais de qualquer encontro com um conhecido que estivesse obrigada a cumprimentar. E aconteceu o que tantas vezes acontece mas nem sempre com as repercussões que aqui relataremos. Entraram mais pessoas, já ela estava no fim da meia torrada e com o galão ao fim a chegar. E foram ocupando as mesas e as cadeiras que, em falindo os outros negócios todos, este do comer e do beber, por pouco que renda, sempre há-de resistir dada a sua natureza. E entrou também um homem com calças de bombazine, uma camisa de flanela mal passada e um casaco castanho de sebo, assim chamado. Transportava um ar dócil e o corpo curvado para a frente como quem carrega os problemas todos do mundo às costas. E mesmo que não sejam todos os do mundo, pode ser que sejam só os seus mas estarem esses a pesar-lhe demasiado. E pediu ele ao balcão a bica e o pastel de nata a que nos referimos há pouco. Pagou. Pegou na bica pelo pires com uma mão e com a outra trazia o pastel de nata num pratinho igual. Procurou com o olhar uma das três mesinhas junto ao imenso vidro transparente e curioso. Pareceu mesmo olhar um pouco mais para a mesinha mais distante da porta. Estavam todas ocupadas. Levantou o queixo observando toda a sala mas os lugares estavam tomados. Fez o que é natural fazer-se nestas circunstâncias. Voltou-se para o balcão a quem planeava devolver os pires e comer de pé. Ia a meio da rotação de regresso quando ouviu uma voz feminina de tom suave e doce:
- Sente-se aqui.
Ele não imaginou que fosse para si que falavam mas olhou, como olhamos sempre que se fala num tom acima do burburinho do espaço em que estamos, na direcção da voz e reparou com agrado que era consigo que a mulher bonita e triste falava.
- Sim, sente-se aqui. Eu só ocupo uma cadeira.
- Calculei que esperasse alguém.
- Não espero. Há muito que deixei de esperar. Só não sabia. Na minha vida há muito tempo que não entra ninguém nem creio que volte a entrar.
Enganou-se ela porque tinha acabado de acontecer o contrário das palavras que proferira e ainda pairavam no ar denso da pastelaria.
- Peço desculpa. Eu não quero incomodá-la.
- Quem lhe pede desculpa sou eu. Primeiro ofereço-lhe um lugar na minha mesa e depois destilo as minhas desavenças com a vida. Sente-se. Esta mesa é a melhor.
- Pois é, costumo sentar-me aqui. Gosto dos cantinhos. São mais acolhedores.
- Exactamente. Recomecemos. Bom dia! Quer fazer-me companhia? Tenho um lugar vago nesta mesa.
- É muito gentil da sua parte, a oferta. Vou aceitá-la. Muito bom dia! O meu nome é José António.