A Paixão de Madalena
Livro I - A Paixão de Madalena
7. Foi em Belfast. Kyle pedia-lhe poucas coisas. E
Madalena não lhe recusou esta. Percebia que Kyle quisesse reencontrar-se com a
cidade e, casando com ela, queria fazê-lo num local do coração, que lhe
dissesse muito. Foi a mais íntima das cerimónias. Madalena levou Albertina.
Kyle levou as filhas, os amigos da tertúlia e dois ou três familiares. Ela
tinha um vestidinho pérola de alças, apertado na cintura para depois se abrir
numa roda de pregas e tules. Um coletezinho por cima, cobrindo os ombros, com
as mangas justas aos braços e uma fiada de botões pequeninos, muito juntos,
desde o punho até meio do braço. Kyle revelou nesse dia o que restava da sua
rebeldia. Era uma camisa de seda cinzenta fechada no pescoço com uma gravata
fininha de cabedal. Um colete no mesmo material da gravata e umas calças de
ganga com um cinto de fivela em cinzento escovado. Entraram no registo civil
com sorrisos tímidos e o coração nas mãos. Afinal de contas o noivo tinha
quarenta e dois anos e a noiva dezassete. Ficavam bem lado a lado.
Indisfarçável a diferença, tanto quanto a ansiedade e a vontade de seguirem em
frente. E assinaram. E beijaram-se. Albertina sorriu. A sua menina voara,
libertara-se. Imaginara este momento de muitas formas menos desta. Madalena
está feliz e isso é o que verdadeiramente conta. Houve uns sorrisos, umas
palavras de felicitações, algumas lágrimas, uma garrafa de champanhe e outro
beijo, mais relaxado, mais longo. E saíram para a rua. Para a vida que os
esperava. Almoçaram num restaurante de Belfast onde Kyle reservara mesas para
todos. E o que se seguiu, não sendo uma festa, foi uma festa. As conversas
correram com naturalidade, os olhares ficaram tolerantes e os sorrisos
enfeitaram a mesa. Ao final da tarde, quando se despediram, o jovem casal deu
as mãos e fez a lua de mel improvável. Passearam de mão dada pelas ruas de
Belfast como fizeram no dia em que amaram pela primeira vez com os corpos. E
tal como nesse dia, não fizeram amor. Deitaram-se enroscados um no outro,
entregaram-se as almas, confiaram-se a existência e adormeceram nesse doce
encantamento. O da Felicidade.
Pela manhã, fria e
cinzenta, com as almas do mundo ainda adormecidas na sua maioria, Kyle deu-lhe
uma lição. Encostou-se a ela e sussurrou-lhe ao ouvido:
-Aprende! O setôr
vai ensinar-te.
-Hum, hum.
-Não há mal nenhum,
certas ocasiões, em seres submissa e deixares o teu mestre cuidar de ti. Essa
atitude excita-o porque te sente à sua mercê, um caminho para ele explorar, uma
vulnerabilidade que o faz sentir-se o Senhor do Universo. Deixa-lo tratar dos
teus cabelos.
E ajeitou-lhe os
cabelos desalinhados do sono puxando-os para trás.
-Deixa-lo acariciar
o teu pescoço.
E semeou-lhe beijos
pequeninos na curva da nuca.
-Deixa-lo sentir os
teus seios nas suas mãos.
E tomou-os nas mãos,
enchendo-as e deslizando com elas muito suavemente ao longo da sua curva
generosa.
-Deixa-lo percorrer
o teu ventre.
E percorreu com a
língua essa linha reta e tentadora que une os seios ao púbis.
-Deixa-lo
refrescar-te.
E soprou-lhe os
pelos revoltos e ela contraiu-se um pouco e sorriu.
-E deixa-lo
possuir-te.
E beijou-lhe o sexo
demoradamente e devorou-lho depois e tomou-a com vigor quando ela própria já
não desejava outro destino que não fosse esse.
Madalena aprendeu a
relaxar e a entregar-se. Julgava que tinha aprendido tudo e foi por saber que
ela pensava isso que Kyle, quando estavam prostrados em silêncio a usufruir do
sexo depois do sexo, a informou:
-Não penses que
sabes tudo. Tens muito mais para dar. E tens de aprender a possuir. A tomar o
teu homem para ti.
-Hum, hum.
-Vamos dar um
mergulho gelado e repentino na piscina!
Estava frio, como já
se disse, eles desceram em roupas interiores e envoltos nas tolhas de banho do
hotel. Quando saltaram para a água, diversos hóspedes afloraram às janelas,
alguns empregados espreitaram pelas portas envidraçadas. Com o entusiasmo da água
fria no corpo e a sensação de liberdade, Kyle não reparou que tinha uma
assistência considerável, viu Madalena no meio da piscina, encheu os pulmões de
ar e gritou:
-Abre as pernas,
miúda, o teu velhote vai passar!
Uns sorrisos, uma
risada incontida, uns sobrolhos franzidos, uns ares de espanto, Madalena
corada, Kyle sente o silêncio, percebe o que fez, olha em volta e acrescenta:
-Então? Para eu
passar é preciso que ela abra as pernas, não?
As pessoas
recolheram-se, viraram o olhar para onde o tinham antes ou fingiram
desinteressar-se. Kyle aproximou-se de Madalena, abraçou-a muito apertadinha a
si e disse-lhe:
-O mundo não é como
to dão. Será como tu o fizeres.
Ao final da tarde,
depois de uma refeição devorada, de uma sesta aconchegada, um pouco de leitura
e um duche quente, Kyle ensinou-a a descobrir-se.
-Anda cá!
-Sim, meu adorado
setôr e marido. Faz-me impressão chamar-te marido…
-Sabes o que é que
tens de conhecer melhor para dares prazer ao teu companheiro?
-O meu companheiro!
-Não!
-Não?!
-O que tens de
conhecer melhor, antes de mais, é o teu corpo, os teus limites, os teus desejos
e aquilo de que mais gostas. Tudo isto é um jogo de dar e receber e é
fundamental que conheças muito bem o corpo que vais usar para ambas as coisas.
E ensinou-a, como quem encaminha, a acariciar-se, a descobrir-se no seu próprio
corpo, a encontrar as zonas onde gostava de ser acariciada e estava já
excitadíssima quando Kyle se despiu completamente, a chamou a si e disse:
-Toma! É teu! Faz
dele o que quiseres.
-Dele?
-Do corpo todo.
Descobre-me como te descobrimos ainda agora. Sacia a tua curiosidade…
-E posso fazer
perguntas?
-Todas as que
quiseres. E podes até fazer-me pedidos, dar-me ordens, indicações… o importante
é que comuniques.
E ela descobriu-o.
Com o olhar, com a ponta dos dedos, com as mãos ávidas, com a língua ardente, e
vagueou pelo corpo dele enquanto entregava o seu. E fizeram todas estas coisas
no dia seguinte ao do seu casamento e isso intrigou-a. Estavam já deitados, dormitando
e olhando o teto e sentindo-se por perto e ela resolveu perguntar:
-Se sabias tudo
isto, se tinhas tudo isto para ensinar-me, porquê só hoje? Porquê hoje?
-Porque hoje,
Madalena, é o primeiro dia da nossa lua de mel e de hoje em diante não teremos
segredos, só este receber feito dar, só este amar contínuo e doce enquanto
existirmos um para o outro.
Madalena não
respondeu. Pendurou-se no pescoço dele e beijou-o longamente.
Já aqui se defendeu
a influência que uma cidade pode ter na formação de uma pessoa, nas suas
opções, no seu modo de vida. Vem isto a suceder por via das relações afetuosas
que as pessoas desenvolvem com as cidades. Belfast marcara Kyle e Madalena, o
casal. E, por essa razão, por residirem aí memórias fortes e importantes, por
se terem desenrolado nas suas ruas conversas íntimas e reveladoras, dividiram o
seu tempo entre a terra das obrigações, Genebra, e a terra das paixões,
Belfast. A situação financeira de Kyle, muitíssimo confortável, permitia-lhes
fazer fins de semana prolongados, férias e, por vezes, até a loucura de uma
fuga de dois dias para a cidade que os acolhera. Uma breve viagem de avião e o
mundo mudava. Desvaneciam-se as preocupações, viviam-se as emoções. Era em
Belfast que se sentiam inquebrantáveis e eternos.
Ora, é a eternidade,
concordará o leitor, outro bom motivo de conversa e, em abono da verdade, esta
condição de contador de histórias vai pouco além do que manter uma boa
conversa. Eterno, Kyle não será. Estando nós em mil novecentos e noventa, tendo
o leitor prestado atenção às primeiras linhas desta história, sabe que morrerá
em breve, mais precisamente no Outono de mil novecentos e noventa e quatro.
Ainda assim, muito lhe falta viver. Mais do que algumas pessoas que estarão
entre nós muitos anos após a partida do irlandês. Contudo, o corpo de Kyle
começou a revoltar-se cedo, como se sabe. Ao fim da noite, fora buscar Madalena
ao trabalho. Ofereceram-lhe uma Guiness
que recusou com simpatia. Umas dores de cabeça e umas náuseas traziam-no
indisposto, incomodado, preocupado sem saber com quê. Quando Madalena saiu,
beijou-a na testa. Recusou-lhe um beijo nos lábios como se evitasse, por
instinto, que algo mau passasse para ela. Conduziu inquieto e ela apercebeu-se:
-Que tens, velhote?
-Estou mal disposto,
só isso. Deve ter sido algo que eu comi.
-E o que comeste tu?
-Nada.
-Ora aí está um
diagnóstico inteligente! Assim que chegarmos vou fazer-te um chá quentinho.
Pode ser?
-Claro que sim! És
uma santa!
-Talvez não…
-Talvez não…
Quando chegaram,
saíram do carro, subiram as escadas do prédio, Madalena estendeu a sua chave à
porta e sentiu um estrondo seco atrás de si. Kyle desfalecera. Ela acabou de
abrir a porta, assustada, tentou puxá-lo para dentro, mas era um corpo
demasiado pesado para si. Ficou atravessado, meio corpo dentro de casa e outro
meio fora dela. Assim ficaria para sempre na vida de Madalena. Ocupando o seu
espaço, deixando-lhe outro espaço livre para ocupar. Madalena grita agora, Ajudem-me, por favor, ajudem-me! Os vizinhos
e as vizinhas acudiram, pouco depois havia uma ambulância e Kyle seguia para o
hospital. Assim há de ser sempre a vida para Madalena. Estendendo-lhe uma mão
de felicidade, estendendo-lhe uma mão de sofrimento. Talvez por isso se tenha
feito uma mulher forte, segura de si e preparada para o pior. No dia seguinte
visitou Kyle.
-Está aqui uma
menina para o ver…
-É a minha mulher.
-Está ainda
combalido, senhor Mckenzie…
-Mande entrar a
menina e quando eu lhe apalpar o rabo venha depois dizer-me que estou
combalido.
-Senhor Mckenzie!
Madalena entrou no
quarto, aproximou-se dele e beijou-o nos lábios, ele estendeu uma mão e
apalpou-lhe o rabo, a enfermeira saiu com um olhar de reprovação e sacudindo a
cabeça, só não se percebe porque sorria.
-Estás melhor?
-Pronto para outra!
-Vá lá, a sério…
-Estabilizei. Exames
hoje, amanhã nova medicação e volto para casa daqui a um par de dias… e tu?
-Escola na
perfeição, trabalho a correr bem, a minha avó tem-me ido buscar. Eu podia ir de
autocarro, mas ela insiste…
-Deves aceitar.
Faz-lhe bem sentir que não te perdeu de todo. Se a deixares ajudar-te, estás a
ajudá-la muito.
-Tens um bom íntimo!
-Sinto a tua falta.
-Eu sei. Também
sinto a tua, meu querido.
-Mas…
-Mas o quê?
-Um dia destes pode
ser de vez.
-Não digas isso, por
favor. Não digas isso! Já chega de perdas na minha vida….
-Nunca me perderás.
Estarei sempre contigo.
-Assim está melhor.
-Amanhã também vens
ver-me?
-Claro! Que
pergunta!
-Podias fazer-me um
favor...
-Sim…
-Está um maço de
cigarros…
-Kyle Mckenzie!
Comporte-se! Ainda nem fez vinte e quatro horas que caíste redondo no chão,
estás internado e queres conspurcar o hospital? Se eu não te conhecesse bem…
-Se tu não me
conhecesses bem, o quê?
- Se eu não te
conhecesse bem, não tinha os cigarros aqui comigo na mala!
-Malvada! Liiinda!
Perfeiiiiita! Adoro-te! Põe ali na gaveta.
-Na, na… tudo tem um
preço.
-E qual é o teu?
-Essa mão no meu
rabo… por baixo da saia!
Kyle recuperou.
Estabilizou. A vida passou a fazer-se mais por Genebra. Era necessária alguma
prudência e alguns cuidados com a saúde de Kyle. Os fins de semana corriam
tranquilos. Liam, conversavam, faziam tardes eternas de chá e biscoitos. Por
vezes convidavam Albertina que aceitava e trazia sempre consigo um miminho
doce. E foi numa dessas tardes que a
vida fintou a vida, que os afetos inexistentes encontraram chão desconhecido e
fértil. A força de Kyle tem sido posta à prova. Chegará agora a vez de
Madalena. E vai acontecer-lhe com naturalidade aquilo que acontece com tantos
de nós. Da fraqueza surgirão forças, da impreparação surgirá engenho, na
impossibilidade se abrirá caminho para a vida. Estão os dois a ler. Madalena
mais concentrada. E é por isso que nem ouve o ding-dong melódico da campainha.
Kyle sorri e vai à porta. Espreita. Abre. Madalena ouve um conversar em
sussurro, como quem não quer incomodar que, ao mesmo tempo, lhe parece uma
lamúria. Kyle reentra na sala com um ar preocupado e fala. Ao falar, fá-lo como
se não soubesse o que está a fazer. Diz, mas não sabe o que está a dizer.
Parece surpreendido e é por isso que as suas palavras são uma afirmação, mas
soam como uma pergunta:
-Está ali a tua
irmã?!
-Que raio de
conversa é essa? Sabes que a minha irmã…
-Então é melhor ires
ver porque a pessoa que ali está parece muito certa do que diz.
-Será que…
-Não sei o que será,
Madalena, mas aquela pessoa é bem mais velha do que tu e isso não bate certo
com o que eu sei.
-Liberta?
Madalena levantou-se
num gesto brusco que vai amaciando à medida que se aproxima da porta, levava
uma expressão de zanga que dispersou a custo naquelas passadas. E, de repente,
enquanto andava, lembrou-se de que fosse quem fosse que estivesse à porta, mesmo
que fosse efetivamente Liberta, ela não teria como reconhecê-la. Vira-a duas ou
três vezes em visitas fugazes que Albertina fizera a Portugal. Nada mais do que
isso e há tanto tempo que lhe resta somente uma imagem esfumada semeada na
memória. Abriu a porta que Kyle deixara encostada e pasmou com o que viu. Era
uma moça de cara arredondada como a sua, os lábios finos e bem desenhados como
os seus, o olhar azul como o seu e os caracóis no cabelo como os seus. Está em
total desalinho. Roxa de frio, mal vestida, as roupas velhas e desgastadas, os
sapatos tinham andado muito mais do que aquilo para que foram concebidos e isso
notava-se nas biqueiras desgastadas e nos tacões arranhados. Lá fora estava
frio, talvez uns doze graus e ela vestia um vestidinho de algodão que fora
branco e um casaquinho de malha. Aquela pessoa passara mal. Mas não foi isso,
apesar de marcante, o que mais chamou a atenção de Madalena. Foi a criança nos
braços da rapariga, envolta em panos que tinham sido mantas, e por já nenhum
servir sozinho para aquecer um bebé,
todos foram ali juntos e embrulhados uns nos outros à volta da criança.
-Liberta?
-Sim, mana, sou eu.
Não me reconheces?
Aquela palavra,
mana, ali colocada no meio da frase soara-lhe a falso e normalmente tê-la-ia
corrigido, mas o estado da rapariga e a curiosidade a palpitar-lhe no peito, Quem será o bebé? Como será o bebé?,
levaram-na a saltar esses pormenores.
-Não te fazia aqui e
eu não tenho como reconhecer-te porque não te conheço. Sabes que nos vimos duas
ou três vezes por períodos breves quando eu era muito miúda. Eu reconheço-te os
meus traços e os da nossa irmã, mas não te conheço.
-Mas sou eu,
Madalena, sou eu, a Liberta. Eu vi-te nascer, a ti e à mana, eu estava com a
nossa mãe naqueles dias difíceis e eu conheço-te e não tenho mais a quem
recorrer. Por favor, deixa-me entrar, deixa-me ao menos dizer-te ao que venho.
-Sim, entra. Suponho
que não haverá muitas Libertas neste mundo à procura de uma Madalena…
Liberta entrou.
Madalena disse-lhe para aguardar um segundo na entrada, foi à sala, sussurrou
ao ouvido de Kyle, Está tudo bem, confia em
mim, já volto, foi buscar Liberta e levou-a para o quarto:
-Vais tomar um banho
quente, vamos vestir-te e vamos agasalhar-te, vais comer e depois conversamos.
Agora é preciso cuidar de ti e do bebé. Vá, despe-te.
-Da bebé. Corrigiu
Liberta. E ficou parada, olhando em volta, procurando um sítio para poisar a
criança, e os seus olhos pararam em Madalena. Estendeu-lhe a bebé e disse:
-Seguras?
-Não sei se sei…
-É fácil. É como uma
bonequinha.
-Nunca tive bonecas.
-Olha, pões uma mão
por trás da cabeça e outra por baixo do rabinho.
Madalena segurou a
menina e sentiu-se pequenina e vulnerável como ela e, ao mesmo tempo, teve
medo. Um medo terrível de a estragar! Estava ali uma vida preciosa a despontar,
precisava de cuidados e ela não tinha a mínima ideia do que fazer. Por momentos
pensou se não se teria precipitado ao casar-se com Kyle, mas afastou o
pensamento e aconchegou a criança a si. E sentiu o seu calor, a sua vida,
contemplou a pele rosada e os olhinhos fechados. A bebé acordou, olhou-a em
silêncio, como se estivesse a examiná-la e esse olhar que trocaram foi a
semente. Liberta tomou banho, vestiu-se e agasalhou-se com roupas de Madalena,
bebeu um chá quente e devorou os biscoitos que estavam no pires. Madalena
fez-lhe uma sandes que ela comeu também. Depois explicou que descobrira
Madalena seguindo-a a partir de casa de Albertina. Esperara vários dias até que
acabou por vê-la. E o que vinha pedir-lhe não se atrevia a pedir a Albertina.
De resto, quase não falava com a avó. Sabia que estava zangada por causa de
assuntos antigos e não ousava pedir-lhe nada.
-Sim, mas o que
queres tu, Liberta?
-Ajuda.
-Que tipo de ajuda?
-Eu casei com um
rapaz lá da terra, o Bernardino Silva. É bom moço, gosta de mim, é muito
trabalhador, mas muito humilde. É pobre como nós. Viemos tentar a vida aqui,
mas está a ser muito difícil. Mal temos para comer e é preciso pagar umas
dívidas que fizemos por causa da viagem e dos papéis, a legalização. Sabes como
tudo é caro aqui…
-Sim, o que precisas
é de dinheiro…
-Não é que não desse
jeito, mas não me atrevo a pedir para mim. Peço para a menina. Não sei como te
diga…
-Sê direta!
-Ela é pequenina.
Estou a tentar arranjar trabalho e quando me veem com ela recusam logo. Se me
ficasses com ela uma semana
-O quê?!
-Se me ficasses…
-Eu percebi! Só não
percebo como podes pedir-me isso. Eu não sei nada de bebés, nem sei a idade
dela, nem o nome, Liberta!
-Chama-se Mariana.
Mariana Silva e tem duas semanas. Já nasceu cá. Também temos essa despesa para
pagar. Por favor, Madalena, só até eu arranjar trabalho. Depois logo encontro
quem me fique com ela.
-Não sei que te
diga. Estou apavorada. E se lhe acontece alguma coisa?
-Não há de acontecer
nada, Madalena. Só uma semana. É tua sobrinha. Podes dar-lhe o que eu não
posso. Por favor… eu venho buscá-la de hoje a oito dias.
-E o que é que é
preciso fazer?
-Eu ensino-te. As
coisas dela estão neste saquinho.
E passaram o resto
da tarde conversando. Liberta ensinou os cuidados básicos, mostrou os
documentos, falou de horas para comer, de como mudar uma fralda, limpar a
criança quando bolsa, ensinou-lhe a preparar o leite em pó e ao fim do dia saiu
com mil agradecimentos e despedidas, Até para a
semana, disse. Mas nunca mais voltou.
Kyle, que
presenciara tudo aos repelões, o suficiente para aperceber-se do que se
passara, ironizou assim que Liberta saiu:
-A tua irmã
esqueceu-se cá da filha!
-Kyle, por favor,
são só oito dias… uma simples semana em que posso matar a fome a esta criança.
Ela ensinou-me como fazer.
-E também te ensinou
a amá-la?
-São só oito dias,
Kyle.
-Tu tens uma vida,
miúda. Tens escola, tens trabalho, tens um marido… sei lá, podias ter
perguntado o que eu achava…
-Tu achas bem. Tu és
o homem com o maior coração do mundo, um defensor dos direitos das pessoas…
-Uma semana?
-Uma semana!
Não fazemos juízos
de valor. Julgar é fácil. O difícil é experimentar a pele do outro. Sabemos,
mas não exploramos para já, as razões de Liberta. O facto é que passou uma
semana e outra e outra e um mês e um ano e outro até que chegou um dia em que
Madalena olhou Mariana e viu uma filha e Mariana olhou Madalena e viu uma mãe.
E, tendo nós tempo e engenho, aqui relataremos algumas das provações que as
esperam. Para já, anda Madalena procurando Liberta porque ainda não sabe que a
não encontrará. A sua vida revolveu-se. Deixou o trabalho, procurou uma pessoa
que cuidasse da criança enquanto ia à escola e apoiou-se em Kyle que estava
habituado a ter mulherzinhas por perto e um dia lhe disse em tom de
brincadeira, Se a tua irmã continua a
demorar-se, temos de comprar uma casa maior. Madalena teve de adaptar-se
à nova realidade e aos novos ritmos. Sofreu com as noites em branco e as idas
ao hospital, quase sempre por causa de coisa nenhuma que lhe parecia tão grave
e, sobretudo, cresceu. Aprendeu outra responsabilidade. A inigualável
responsabilidade de ter ao seu cuidado uma vida humana completamente indefesa.
E aprendeu outro amor. Uma dependência. Kyle dizia-lhe com frequência que
estava a revelar-se uma boa mãe e daria uma excelente mãe para os filhos de
ambos. E combinaram tê-los.
Foi por essa altura
que Madalena conheceu Pablo Sentido. Era um eterno amigo de Kyle que havia
fugido da Espanha franquista, se mantivera no exílio escrevendo sobre o projeto
da Espanha libertada e quando ela finalmente se libertou, ele não regressou. Continuou
a escrever e a publicar nos mesmos jornais da reação, desta vez sobre os
defeitos da democracia, os abutres do poder, a subjugação do povo pela finança
e ainda sobre… sexo! Era um psiquiatra especializado em sexologia que tinha o
dom e o gosto da confrontação. Participava nas tertúlias de amigos que
aconteciam quando Deus queria embora fossem todos ateus e alguns, até,
agnósticos. Ora, Deus, que também tem as suas rotinas, queria sempre à sexta
feira, mas não era todas as sextas, era lá de quando em vez. Madalena gostava
de os ouvir a discorrer sobre o futuro do mundo pela noite dentro e, por vezes,
também participava. Mais recentemente, porém, os cuidados com Mariana
obrigavam-na a não ir ou a sair mais cedo. Ficava um bocadinho e depois Kyle ou
um amigo ia pô-la a casa para a senhora que ficava com a bebé poder despegar e
ir à sua vida. Foi numa dessas tertúlias de visita fugaz que calhou a vez a
Pablo Sentido de levar Madalena a casa e iam lado a lado no carro, falando
sobre aquelas reuniões de amigos, sobre Kyle, a Espanha, Franco, Portugal e a
luta pela democracia alcançada mas instável,
Cuidado com os barões, avisava, Cuidado
com os barões, que Pablo surpreendeu Madalena:
-Olha lá, tu e o
Kyle já fizeram sexo anal?
Madalena petrificou.
Sentiu-se invadida e insegura e só conseguiu dizer:
-Para o carro! Eu
faço o resto a pé.
-Não te incomodes,
miúda, não te ofendas, a pergunta é meramente técnica.
-Nada que te diga
respeito.
-Claro! A tua vida
com Kyle não me diz respeito, muito menos na intimidade, mas a minha pergunta
não era sobre vós, era sobre as práticas e os comportamentos de um casal com
acentuada diferença de idades…
-Podias ter começado
por aí…
-Rodeios! Para quê
rodeios se podemos ser diretos?
-Para sermos
educados!
-A educação é uma
ficção, um artifício social, não existe.
-Já vi que para ti
não.
E a conversa morreu
por ali, mas a pergunta ficou plantada na mente de Madalena. Assim que kyle
chegou a casa, tomou um duche, deitou-se e ouviu Madalena que ele julgava
adormecida:
-Setôr…
-Sim, miúda…
-Porque é que nunca
fizemos sexo anal?
-Estou a ver que foi
o Pablo quem te trouxe hoje! Ele faz a mesma pergunta a toda a gente. Essa e
outras.
-Sim, mas porquê?
-Porque nunca
pediste.
-Tu não ofereceste.
-Se tivesse de
acontecer, teria de ser pela tua curiosidade e não pela minha vontade.
-É bom?
-Acredito que seja
melhor para os homens do que para as mulheres.
-Porquê?
-Acho que nem eles,
nem elas, perceberam ainda como pode fazer-se.
-E como pode
fazer-se?
-Ao contrário do que
a maioria pensa, eu acho que deve ser a mulher a escolher quando isso deve
acontecer e, escolhendo, acho que ela deve orientar todo o processo, os
pequenos gestos, as carícias, a penetração, tudo isso deve ser ela quem
escolhe, quem decide, quem faz…
-Porque pensas isso?
-Porque acho que o
sexo só é bom se for bom para os dois, não pode constituir uma invasão e esse
tipo de sexo pode ser invasivo.
-Todo o sexo é
invasivo…
-Nem todo, mas sim,
muito é. Mas este pode ser particularmente invasivo. Ora, se a mulher estiver
no comando, isso só acontecerá quando ela estiver completamente preparada,
relaxada, desejando que aconteça…
-E…
-E isso é metade do
caminho para uma relação bem sucedida…
-E vocês, o que
fazem?
-A nós, cabe-nos ser
carinhosos, pacientes e… obedientes!
As luzes apagaram-se
e quando Kyle adormeceu nessa noite agradeceu em silêncio e pela primeira vez
as parvoíces de Pablo Sentido.
As tertúlias eram
fantásticas. Eles e elas falavam de tudo, arte, cultura, política, literatura,
ciência e discorriam, desenhavam as suas próprias teorias, liam textos,
comentavam-nos e decidiam quem eram os verdadeiros artistas, os bons
escritores, os políticos de mérito e decidiam também como resolver os problemas
do mundo. Havia um momento de que Madalena gostava em particular. Era quando
eles analisavam a vida de cada um e davam conselhos sobre o que cada um deveria
fazer no futuro. Aquelas pessoas eram genuínas na sua amizade, importavam-se
umas com as outras e criavam entre si laços duradouros. Madalena
experimentará essa força daqui por uns anos. Para já, o casal
Mckenzie é visto como um exemplo do amor puro, da resistência aos preconceitos,
da liberdade de decisão da autodeterminação de cada um sobre o seu próprio
destino. O gesto de Madalena, quando solicitou a sua emancipação, colheu
aplauso e clamor na tertúlia e o seu casamento com Kyle foi um sinal de
esperança num Universo moribundo de ideias e liberdade. Jimmy McCarthur, o
arquiteto. Um irlandês de famílias abastadas e influentes, amigo de infância de
Kyle, que se esperava viesse a assumir a firma de advogados da família, mas se
entregou ao trabalho para pagar os seus próprios estudos. Edmond Chevalier, um
francês de origens humildes que fizera os estudos com bolsas por via dos
excelentes resultados que sempre apresentara até formar-se em Medicina. Exerceu
pouco tempo. Refugiou-se na escrita e vive disso. Dominique Pritchard, uma
professora belga que seguira a carreira diplomática e estava agora no consulado
daquele país em Genebra. Chester Miller, nascido na suíça, descendente de
britânicos, empresário na área dos produtos oftálmicos, era uma espécie de
advogado do diabo do grupo. Divertia-se a contrariá-los, costumava dizer, Vocês são uns revolucionários de Porto na mão,
especialistas do Xerês e do sofá! Eles zangavam-se e zurziam-no de
argumentos e no fim brindavam todos. Eram estes alguns dos mais significativos
elementos daquela dúzia de amigos que fazia emergir de um bom vinho francês ou
de uma garrafa de Porto as mais fantásticas teorias. Tudo fazia sentido para
eles e isso era o importante.
Estão juntos hoje. E
erguem copos e tilintam uns nos outros e bebem e falam alto e cantam e
festejam. Madalena terminou com assinalável sucesso o seu curso profissional e
Kyle surpreendeu-a combinando com eles uma tertúlia-festa. Jorraram vivas ao
saber, à valorização da mulher, ao poder do trabalho contra a tirania do
colarinho branco e alguém disse, com ébrio propósito, Miúda, és finalmente uma mulher livre e armada para vida! E
era. Só não o sabia ainda. E, no meio de todo aquele entusiasmo, uma voz se
ouviu gritando, Viva a liberdade de expressão
sexual da mulher! Um breve silêncio e uma dúzia de pessoas gritou em
coro:
-Cala-te Pablo!
Nessa noite, quando
chegaram a casa, Kyle mostrou-se inquieto.
-Que tens, velhote?
-Nada, nada…
Era falso. A meio da
noite, sem lhe perguntar se ela estava acordada, explodiu:
-Que achas da malta
da tertúlia?
-Hummm, vais acordar
a Mariana…
-Não é o sono da
Mariana que me preocupa, é o nosso. Estamos todos adormecidos. É fácil gritar
princípios aos sete ventos numa tertúlia quando todos estão confortáveis e têm
um copo de Porto na mão…
-Até pareces o
Chester.
-O Chester às vezes
tem razão.
-Oh diabo! Estás
preocupado com alguma coisa não estás?
-Claro, Madalena.
Não sei quanto tempo de vida tenho, não sei o que me resta fazer, mas queria
ter uma palavra a dizer na forma como vou gastar esse tempo, queria tentar
fazer a diferença, queria mais do que palavras, o ativismo de sofá é uma
hipocrisia.
-E porque é que
pressinto que já sabes o que queres? E, já agora, pressinto que vem aí coisa da
grossa…
-Sim, já decidi…
-Podias ter-me
consultado…
-Não precisas
acompanhar-me.
-Irei contigo para
todo o lado.
-Há a Mariana.
-Irá connosco.
-E sim, desta vez
coube-me decidir unilateralmente, mas é mais forte do que eu, estou para morrer
e quero ser verdadeiramente útil antes de partir.
-Cala-te com isso!
Venha o plano.
-Vais odiar-me…
-Amo-te!
-Quero ir para
África…
-Vamos!