A Paixão de Madalena
Livro I - A Paixão de Madalena
9.
Reconhecemos nós e reconhecerá o leitor que, desde que pode comunicar com
palavras, ditas ou escritas, o Homem anda conversando e debatendo em torno dos
mesmos assuntos que não serão mais do que uma mão cheia. O sentido da vida, o
que é a morte, o valor do amor, o papel do sexo, a solidariedade, a existência,
ou não, de divina e reguladora entidade, a subsistência, a segurança, a origem
das espécies e, claro, essa filosófica e interminável discussão acerca da mudança.
Há quem defenda de forma clara e inequívoca que as pessoas não mudam. Nascem
com uma matriz comportamental e é com ela que morrem e, mesmo quando tentam mudar, hão de vir ter
à sua originária e única maneira de ser. Os adeptos desta teoria aduzem pesados
e imutáveis argumentos. E há quem defenda de forma clara e inequívoca que as
pessoas mudam. Nascem lá como nascem, mas crescem, aprendem, são permeáveis ao
conhecimento, vulneráveis às experiências e acabam alterando a sua maneira de
ser.
Escolhemos
escrever neste ainda breve capítulo, por duas vezes, a expressão maneira de
ser. Essa palavra, maneira, daria motivo para um romance e mais umas
quantas teses de mestrado e doutoramento e ainda diversos capítulos em
compêndios mais ou menos competentes sobre teoria da literatura. São, quanto a
nós, esforços inúteis e inócuos porquanto quando o autor destas linhas escreve maneira
de ser, toda a gente, mais ou menos letrada, percebe do que se trata. Quase
tão inútil a discussão quanto essa outra que ainda há pouco referimos sobre se,
efetivamente, o Homem muda ou não. Inútil, pois, que não se discute, ou deveria
discutir, que possa depender da escolha do Homem aquilo que é a sua essência.
Quando nascemos já estamos mudando. E mudamos, até, o mundo à nossa volta. E
quando vivemos, a mudança é essência e definição da própria vida. É certo que,
por motivos de segurança e auto consciência, tentamos cristalizar no tempo
certas imagens de nós e por isso mesmo vamos dizendo, Eu sou isto, Eu
creio nisto, Eu quero isto, Eu ajo assim, De mim esperem
isto. Acontece, pois, não se tratarem mais do que tentativas de
cristalização de imagens pois que, à medida que vamos fazendo estas
declarações, vamos mudando com elas e até por elas.
Continuai,
assim, a discutir o indiscutível que, para nós, humilde autor desta Paixão, a
de Madalena, a mudança é um facto imutável.
Madalena
mudou. Não foi fácil. Nem a sua decisão, nem a aceitação dela por parte de quem
a rodeia, nem a sua execução por se tratar de fenómeno raro, raramente
autorizado. Corria o ano de mil novecentos e noventa e três, tinham regressado
há pouco de África, e a menina que conhecemos adolescente completou vinte
primaveras. Nesse ano, em todos os meses, no dia do seu aniversário, Kyle lho
lembrou com um carinho, uma pulseira, uns chocolates, umas flores, um jantar
romântico. No final do ano não pôde continuar porque foi hospitalizado. Assim,
quando Madalena o visitava e calhava no dia do seu aniversário, dizia-lhe ao
ouvido:
-Vinte
anos! És uma mulher!
Assim
se pode dizer que, no ano em que fez vinte anos, Madalena fê-los doze vezes.
Kyle nunca se esqueceu de lho relembrar e foi também a consciência dessa
maturidade que a fez querer mudar. É que, tendo Madalena vinte anos, pouca
matemática seria necessária para se perceber que sua irmã morrera há dez. Não
se trata da mana Liberta que lhe deixou Mariana nos braços e nunca mais voltou,
nem voltará. Trata-se de outra irmã. Um pouco mais nova. Muito pouco.
Foi
numa terça feira. A manhã estava fria de sol e por isso mesmo o corpo se
encolhia mas a alma se expandia a novos horizontes e realidades. Entrou pelo
Registo Civil dentro, procurou alguém que a pudesse atender, e disse com
convicção na voz e na intenção:
-Quero
mudar de nome!
-Lamento,
senhorita, mas isso não vai ser possível.
-Como
assim, não vai ser possível?
-Não.
Ninguém muda de nome. Se uma pessoa mudar de nome, toda a sua identidade
passada se altera, todos os documentos que assinou perdem validade e todos e
todos os que assinar daqui em diante é como se fossem assinados por outra
pessoa.
-Sim,
compreendo, mas, efetivamente, eu não pretendo mudar de nome. O que eu quero é
acrescentar um nome aos que já tenho.
-Muda
pouco, o caso. Outro nome, outra pessoa…
Madalena
sentiu-se encurralada e quando se sentia encurralada costumava reagir com mais
vigor e imaginação. E foi por isso que lhe saiu o argumento que lhe saiu e é
como lhe saiu que o relatamos:
-Então
quer dizer que, se os meus pais me tivessem chamado Monte de Caca, eu tinha de
ficar Monte de Caca para o resto da vida?
-Meu
Deus, a senhora chama-se Monte de Caca?!
-Chamo.
-Jesus,
credo… nesse caso há uma solução…
-E
qual é?
-A
senhora tem de expor a sua situação num requerimento e remetê-lo à Direção
Nacional dos Cartórios e Notariados. A sua exposição será avaliada por uma
comissão que, em casos muito excecionais, pode deferir…
-E
onde é que entrego o requerimento?
-Aqui
mesmo. Ou remete por correio.
-Remeterei
por correio.
-Sim,
claro! As melhoras, quer dizer, boa sorte.
-Não
se preocupe, tenho outros nomes…
-Ah
sim? Pois claro que sim… ufa, que alívio. Agora nem sabia como despedir-me…
-Madalena.
Madalena da Conceição…
-Madalena
da Conceição M…
-Sim,
veja lá a desgraça.
-Uma
desgraça, de facto.
Madalena
saiu feliz. A ingenuidade da senhora levara-a a dar-lhe a informação que
pretendia. Seria agora necessário redigir o requerimento com propriedade e com
rigor para que se percebesse a sua motivação. Era mesmo necessário contar
alguns momentos da sua vida em que não queria voltar a mexer. Teria de ser.
Nunca gostara de ser Conceição. Não percebia a sua conceção ou, percebendo-a,
sabia-a mergulhada no pecado dos homens ainda que emergisse do amor deles.
Mas os homens tinham decidido não ver o amor e concentrar-se no pecado.
Exilaram-na da vida muito cedo. E por isso se entregou a Albertina e à sua
irmã mais nova. Pouco mais nova. Por outro lado, essa irmã sempre fora uma luz
na sua vida. Um sorriso, um conselho, uma matreirice, um olhar, uma confissão,
uma partilha, uma ligação com o mundo real. Uma luz a fazer sentido. Chamava-se
Maria da Luz. E Madalena queria expurgar de si a conceção em pecado e eternizar
em si a luz que de si nunca tinha saído. Essa irmã era a comunhão total, era
parte de si, a sua razão para continuar a viver. Têm força os mortos. Por
vezes, mais do que os vivos. Antes de partir, Maria da Luz dissera-lhe, Vive,
vive tudo por mim como se fosse eu. E Madalena tem trazido consigo essa
missão, a de mostrar a Maria da Luz como é a vida. E terminava o requerimento
como começara, solicitando que a deixassem ter um nome que fizesse sentido e
desse vida a quem merecia a vida e emprestasse esperança a quem precisava dela.
Queria ser Madalena da Luz em vez de Madalena da Conceição. E é com a luz desse
nome que enfrentará a vida que lhe falta viver. Tem muita pela frente. Alguma
carregada de sofrimento e outra salpicada de alegrias como normalmente sucede a
todos nós.
A
cara lavada em lágrimas, Mariana ao colo sem perceber o que se passava, o
hospital atrás d si, um táxi, a campainha da porta de Albertina a chorar, os
cabelos brancos da avó a surgirem e uma explosão:
-Ajuda-me,
avó Bá, ajuda-me! Não posso, não consigo viver sem ele. Era a minha trave, a
minha vida, o meu homem… porque tem de acabar, avó? Porque tem de acabar assim?
Albertina
chegou-a ao seu peito, fechou a porta, levou-a para dentro e tentou sossegá-la.
Usou palavras de coragem, que estaria com ela como sempre estiveram, que teriam
Mariana para criar, se quisesse voltariam a viver juntas…
-Eu
só o quero a ele, avó Bá, eu só o quero a ele…
-Mas
o que te disseram?
-Que
tinha pouco tempo. Meses. A viagem a África não ajudou…
-Mas
não foi a vontade dele?
-Claro,
mas está fraco… vai passar o Natal no hospital. Só sairá se recuperar o
suficiente e quando o tempo estiver menos agressivo, mas virá por pouco tempo…
foi o que disseram.
-Aceita
a dor, Madalena, só assim a conseguirás superar.
-Eu
não queria perder mais ninguém. Primeiro a mana e agora o meu homem, o meu
irlandês teimoso de olhos azuis.
-Será
sempre teu, Madalena.
Madalena
tem lutado com a vida para conquistar-lhe confiança e sempre que parece superar
uma provação, uma onda de sofrimento, a vida derruba-a de novo, joga-a ao chão,
seu lugar primeiro e último.
O
estado de saúde de Kyle melhorou, piorou e voltou a melhorar. Sofria de cancro
no cólon. A luta era difícil e penosa e, pior de tudo, tinha um vencedor
anunciado. Saiu do hospital numa manhã chuvosa de abril. Madalena chamara um
táxi que esperou enquanto foi buscá-lo lá dentro. Levou-o para casa, tratou-o
como um príncipe, o seu príncipe. Teve de refazer o quotidiano para poder
cuidar dele. Manteve em casa a senhora que a ajudava com Mariana. Trabalhava.
Ganhava muito pouco, mas o vencimento de Kyle era generoso e ela geria-o com
rigor. Fizeram inúmeras tardes de chá, conversaram sobre livros, os amigos
vieram visitá-lo de quando em vez e pelo verão sentia-se a recuperar. Com mais
força. Numa tarde de agosto, quis fazer amor. Fizeram amor devagarinho como se
não quisessem estragar nada. No fim, ela limpou-lhe o suor da testa.
Adormeceram abraçados. Ela sonhou que sobrevoavam o mundo na sua cama
observando os monumentos e saudando as pessoas. Ele sonhou que jogava à bola
com uma criança que o tratava por pai. Quando acordaram, disse a Madalena:
-Sonhei
que tínhamos um filho.
-Foi
só um sonho.
Madalena
não sabia ainda, nem tão pouco Kyle, mas tinham de facti um filho. Aquele que
acabaram de fazer. São insondáveis os caminhos da mente.
Dois
meses mais tarde, Kyle voltará ao hospital e, tendo o leitor prestado atenção
ao início desta história, saberá que foi para morrer. E saberá também que
Madalena descobriu a semente do amor de ambos e correu a contar-lhe e ele já
não ouviu. Não soube Kyle que seria pai, embora tivesse pressentido que lhe tinha
feito um filho. E sonhou. Sonhou com o fruto desse amor, depois de fazer amor.
E era com isso que estava sonhando outra vez, quando adormeceu para sempre.
Jacob,
assim se chamará. Não será somente o filho de Kyle. Será a herança do seu amor.
E assim viverá. Como o fruto da paixão de Madalena.
------------------- FIM DO LIVRO I -------------------
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