A Arte da Vida
É um homem alto, tem
o carvão na pele. Porque nasceu com África nas veias e porque trabalha nas
minas. Vê pouco o céu. E quando o vê, normalmente é de noite. É um tipo
atarracado, mas de uma estrutura óssea larga e rija como o ferro. Ganha pouco.
Melhor que muitos. O problema não é esse. São os filhos. Ele tem vontades
loucas no ventre. Sai da mina, cruza-se com as raparigas nas ruas e quando
chega a casa, enterra o desespero em Recebida e faz-lhe filhos. Nem sabe bem
quantos tem. Foram nascendo. Deus os trouxe e a alguns os levou. Agora mesmo,
enquanto empurra um carro de mão carregado de material, sabe que ela deve
estar-se aliviando de uma barriga do tamanho da lua. Os filhos saem de casa
cedo. Aí pelos três anos já dançam nas ruas à espera que caia uma moeda de um
passante que lhes ache gracinha. Não dá para compreender esses brancos. Lutam
tanto pelo dinheiro e depois não o guardam. Jogam-no na rua a quem o pede. Ele
não é assim, prefere gastá-lo em Manica fresquinha a escorregar pela goela
abaixo e só não gasta mais porque Recebida precisa dele. A última vez foi para
comprar uma esteira.
-Vou comprar uma
esteira, Carvão.
-E para quê você
quer mais uma esteira, Recebida?
-Ora, teu filho vem
aí.
-Qual?
-Sozinho.
-Já temos um filho
chamado Sozinho?
-Vamos ter…
-Ah… está falando
dessa barriga aluada.
-Aluada?
-Sim… parece que
engoliu uma lua.
-Mas não é uma lua
que vai sair dessa barriga. É a sua semente crescida, Carvão.
-E porque lhe vai
chamar Sozinho?
-Ora, porque vai
nascer sozinho.
-Vai? Está a
pedir-me que venha aqui ajudá-la?
-Xiiii, nessas
alturas homem só estorva. Eu mesma faço tudo. Quando ele começar a me pedir
para sair, eu aqueço uma água, coloco no alguidar, abro a esteira, me sento
nela, me inclino para o lado e espero a sua chegada. Dessa vez serei só eu e
ele. Os outros já vão andar nas ruas a semear vida e a colher o que Deus der…
-Recebida, você sabe
mesmo ter um filho sozinha?
-Esse é o nono. Acho
que já deu para aprender.
-Recebida, porque
você compra sempre uma esteira nova para parir?
-Porque eu sei,
Carvão, que essa é provavelmente a única coisa nova que vão ter na vida!
Recebida é mais alta
do que Carvão. E sua estrutura é mais fina. Sua pele tem um tom mais suave. Mas
ela não a pinta com o trabalho das minas. Planta couve, alface, tomate, pepino,
arranja a terra, limpa as ervas, cuida da casa e quando amanhece vai vender no
mercado de Ribáué. Hoje está sentada de lado numa esteira. E Sozinho está
nascendo. Assim que o limpou, percebeu que era diferente dos outros. Atarracado
como o pai, mas de traços elegantes como a mãe e, sobretudo, tranquilo. Nem
chorou muito e logo se calou e se agarrou na mama. Com o passar do tempo se
percebeu que tinha o olhar profundo como se quisesse ver as coisas para além
delas próprias. E quando o tempo avançou, não saiu para as ruas, ficou ajudando
a mãe com a horta. Gostava de mexer nas coisas, tocá-las, senti-las, perceber a
textura, as formas, onde começavam e acabavam, e olhava, olhava, olhava como se
quisesse engolir o mundo com os olhos. Às vezes ficava parado a olhar um tchova
passando, outras vezes, a frente de uma casa, outras vezes, uma pessoa. E ia no
mercado com a mãe vender e ficava olhando as roupas das pessoas, a forma como
se movimentavam. Um dia, chegou um cliente para comprar pimentos e trazia pela
mão uma criança que trazia pela trela um cão. Sozinho segredou no ouvido da mãe
para que ninguém escutasse, não fosse ser pecado:
-Eu sei fazer
aquilo.
-O qué?
-Eu sei fazer
aquilo, minha mãe. Só não sei como. Eu sei aquelas formas e aquelas curvas.
-Tu estás maluco,
menino?
-Não, mãe. Estou
cheio de coisas na cabeça que querem sair.
Recebida quase
desmaiou. Contou para a vizinha Problema que contou para seu marido, Pacífico,
que pediu para ver o menino. E o analisou, e falou com ele e lhe perguntou de
onde vinham aquelas ideias.
-Não sei. Nascem
sozinhas na minha cabeça. Eu as tenho parido como minha mãe me pariu a mim.
Sozinho. Sem ajuda.
Nos dias seguintes,
Pacífico andou observando o comportamento do miúdo e uma noite bateu na porta
de Carvão:
-Carvão, meu amigo,
meu velho amigo, Recebida, minha vizinha, minha respeitável vizinha, eu tenho
um diagnóstico. Esse filho de vocês não pode ir trabalhar nas minas como os
irmãos. Não sei como você fez isso, Carvão, mas você semeou um artista e sua
mulher o pariu.
-Um artista?!
-E dos bons. Assim
como o Mestre Malangatana, como o Mestre Craveirinha, só não sei qual é a arte
dele. Vocês sabem, os artistas são como os vulcões. Nós sabemos que estão lá,
sabemos que vão explodir, só não sabemos quando nem como…
-E o que fazer?
-Posso aconselhar?
-Claro… tem cura?
-Naaa… a única cura
é deixar brotar… mas pode-se procurar…
-Procurar o quê?
-O sentido da arte
dentro dele..
-Fale claro, amigo
Pacífico.
-Porque vocês não o
levam para o Mestre Genuíno, o deixam por lá, a ver se alguma coisa daquilo o
desperta, a ver se as ferramentas do Mestre lhe comunicam ideias e se as ideias
dele querem sair com essas ferramentas…
-E não se paga?
-Genuíno é meu amigo
de nascença, temos no corpo as mesmas marcas da guerra, é só pedir…
-Ficamos devendo-lhe
esse favor…
-Devendo… eu que lhe
devo por todas essas verduras e frutas que deixou no chão da minha porta todos
esses anos. Estamos quase pagos.
-Quase?
-Sim, minha parte só
estará paga se o diagnóstico estiver correto.
Genuíno tinha uma curva nas costas, como se toda a vida tivesse tido um peso forçando a cabeça a
estar inclinada. E teve. O peso das ideias. Sentava-se num banco pequeno,
colocava um pedaço de madeira entre os joelhos, pegava numa ferramenta e nascia
uma zebra, um elefante, um crocodilo, um pássaro. Outras vezes, recebia
encomendas mais utilitárias:
-Mestre Genuíno, dá
para fazer uma cama, minha filha vai casar…
-Só se tiver arte
nela.
-Pode ter.
E ele tirava as
medias, cortava o tabuado, e se dedicava a entalhar floreados e figuras na
cabeceira e a tornear as pernas da cama. E eram mesas de cabeceira e cómodas e
cadeiras e mesas de jantar e almoçar. Desde que pudesse levar arte… Genuíno
olhou o miúdo Sozinho e gostou logo dele. Tinha a calma e a contemplação do
artista. O miúdo, assim que entrou na oficina, sentiu o cheiro da madeira e da
cera entrando-lhe pelas narinas, queria ver tudo e não conseguia, eram coisas
demasiadas, mas uma coisa soube. Até esse dia tinha andado perdido. Meio
nascido. E agora estava nascendo o que faltava, estava-se encontrando naquele
cheiro de ideias paridas.
-Queres mexer
nalguma coisa?
-Quero!
-Mexe.
Olhou as
ferramentas, os pedaços de madeira, passou com a mão sentindo a textura da
lenha, segurou num formão pequenino e num madeiro e iniciou de parir uma ideia.
Era um homem com uma criança pela mão que tinha um cão pela trela. Mestre
Genuíno sentenciou:
-Falta-lhe a técnica.
Falta-lhe conhecer as ferramentas. Falta-lhe saber a arte do acabamento. Falta-lhe
aprender muita coisa…
-Falta-me muita
coisa. Quer dizer então que não sou artista…
-Pelo contrário.
Tudo o que falta-lhe é muito pouco quando comparado com o que tem. Tem ideias
que querem nascer. Pacífico diagnosticou bem. Como sempre. Devia ser médico de
cabeças, esse lá.
O tempo passou.
Passa sempre. Sozinho aprendeu as artes da madeira, as técnicas, o namoro das
ideias, a forma mais apropriada de dar-lhes vida. Pagava ajudando nos trabalhos
práticos de aprontar o tabuado de uma cama, as costas de um armário e quando
era particularmente bem sucedido ou quando conseguia vender uma ideia em
madeira, Mestre Genuíno oferecia-lhe uma ferramenta. Claro está que a porta do
mestre passou a acordar os dias com pimentos, pepinos, tomates e verduras
encostados. Não era um pagamento. Era uma troca. Ribáué foi encolhendo à medida
que Sozinho foi crescendo. Ele queria mais e a terrinha tinha pouco para
dar-lhe. Almejava o mundo. Queria ver
outras vidas, queria sentir o pulsar de outras gentes e precisava olhar o mar.
Tudo junto numa palavra: Maputo! E foi. Dois anos juntando para a viagem. A mãe
chorando duas perdas. A do filho que partia e a do sustento da casa desde que
Carvão morrera trabalhando na mina. Sozinho confortou:
-E vou voltar para
lhe levar comigo.
Foi uma viagem
alucinada. Engavetado num chapa, entalado entre a generosidade das carnes de
uma velha gorda e a janela da carrinha. Olhou tudo, viu tudo, comeu pouco,
cheirou, sentiu. Quatro dias depois entraram em Maputo e Sozinho achou que
estava noutro mundo. Que havia morrido como seu pai Carvão e tinha renascido
nessa terra distante e louca. Tinha um saco consigo. E nele as ferramentas.
Roupa, só a do corpo. E procurou onde dormir e procurou as oficinas da arte e
não as havia. Só carpintarias de móveis. Ali, ao fundo da 24 de julho, junto à
rotunda para a Matola. Começou por aí. Mas a arte corria no sangue e mesmo numa
cama e numa mesa de cabeceira se mostrava ao mundo. Era outra perfeição, eram
peças que contavam histórias. Passou a ser disputado e rápido conseguiu ter uma
oficina pequenina só para si e um rapazinho, ajudante, trazendo as peças para a
rua, pela manhã, chamando quando aparecia um cliente a enamorar-se do seu
trabalho e a comprar-lhe uma peça, e a arrumar tudo de volta ao fim do dia. E
expunha a arte na rua. E vendia. Um dia foi ver o mar. caminhou a avenida quase
toda e depois apanhou uma chopela e disse para o condutor:
-Leva-me no mar.
Quando chegou à
marginal e viu o sol rebrilhar na água desfazendo-se na areia, renasceu pela
terceira vez na sua vida. Aquilo é que era arte. Era mais do que arte. Era um
milagre do Universo. De novo as ideias lhe borbulhavam na cabeça e pediam para
sair todas ao mesmo tempo. Sozinho concentrou-se numa imagem. Um pescador vinha
saindo do mar, com água pela cintura, puxando a sua rede e na beira da praia
dois meninos o esperavam de braços estendidos como que o chamando para o
receber com a dádiva do pescado nas redes.
Chamava-se
Estendido. Pescava desde que se conhecia. Assim que nascera, o mundo
soubera-lhe a sal. Assim que ouvira, seu pai e seu avô lhe falaram do mar.
Assim que andara, entrou pela água salgada dentro desafiando as ondas mansas da
Macaneta. Nunca quis conhecer mundo. O mar bastava-lhe. Conversava com ele.
Contava-lhe os pequenos truques que aprendia para o domar, confessava-lhe
pormenores da sua vida doméstica e pedia-lhe que lhe trouxesse o peixe a tal
parte à hora tal. E perguntavam-lhe:
-Estendido, como
sabes sempre onde vai passar o peixe?
-Pergunto ao mar.
-E o mar diz-te? O
mar fala contigo?
-Todos os dias.
-Tu emalucaste da
cabeça, Estendido.
-Ah sim? Emaluquei?
Então diz-me lá como sei sempre onde vai estar o peixe?
Nos dias em que não
saía para o mar, Estendido sentava-se na areia, abria as pernas, colocava uma
rede no meio e ia remendando, aperfeiçoando, e pensava no manuseio do barco e
da vela e nos movimentos de puxar a rede. E quando cresceu e os amigos andavam
espreitando as moças quando arredavam as capulanas para se aliviarem, ele
continuava baloiçando no barco, ajudando o pai, conversando com ele e com o
mar. E quando Deus quis levar o pai, ele continuou a entrar no barco, a
desafiar sozinho o Índico azul, a pescar ao largo de Maputo, a desembarcar na
praia da cidade para negociar o produto da pesca com os vendedores do mercado
do peixe. Um dia, desses dias em que não saiu para o mar, Generosa veio ao seu
encontro. Era pouco mais velha. Sabida, esperta e generosa na partilha da
vida, mesmo a sua.
-Tu és bom.
-Não sei. Não sei o
que é ser bom.
-Mas eu sei. O teu
interesse é pelo mar, pelo peixe, pelos teus gestos. Devia haver mais como tu.
-E não há?
-Não sei. Eu só
conheço-te...
Sentou-se ao lado
dele. Colocou-lhe uma mão firme numa das coxas moldadas pelo trabalho no barco e continuou a frase suspensa…
-Podias fazer
Estendidos e Estendidas em mim…
-Ora, eu não preciso
de mulher. Eu não quero mulher.
-Mas o mundo precisa
de ti, precisa de mais Estendidos…
-E porquê tu? Tu és
generosa com todos…
-Porque eu te vi.
-Os outros também me
veem.
-Naaa… os outros
olham-te. Eu vejo-te a falar com o mar e acredito nessa conversa.
-Acreditas?
-Hum, hum…
-Mas eu não sei como
fazer com mulher…
-É como um barco.
Cada mulher tem ventos em si que lhe sopram a vontade e os gestos. Só tens
de perceber essa ventania danada e orientar o barco da vida com ela. Sem
contrariar de brusco para não partir, sem deixar correr desenfreada para não
perder, e mantendo em forma, remendando a vela, cosendo a rede, tratando com o
carinho de quem sabe que vai ser recompensado. Se falares comigo, como falas
com o mar, eu vou-te responder como o mar.
-E os outros?
-Quais outros? Onde
está Estendido e Generosa não cabe mais ninguém. Se me fizeres um filho aqui
mesmo, na areia da praia, agora mesmo, neste instante, com o sal da tua pele no
açúcar da minha, vais ver que ninguém vai vir aqui nesses momentos. Até os passarinhos
vão voar longe.
Fez-se um silêncio.
Estendido procurou os caranguejos na orla da rebentação. Nada. Nem umzinho
desses todos que sempre andam por aí. Olhou nos olhos dela e os olhos dela
conversaram com ele. E esse filho foi gerado ali mesmo. Chama-se Feito na Areia
e já ajuda o pai na pescaria. Aprende rápido. Tem um irmão e uma irmã. Feito no
Barco e Feita em Casa. Estendido nunca pensara que a vida poderia ser tão
generosa com ele. Mas o advento de Generosa lhe trouxe milagres. A casa limpa,
a roupa preparada, uma mulher para conversar nos dias em que não sai para o
mar, umas coxas quentes e roliças a envolvê-lo quando o sangue aquece e a vida
quer viver, um barco de vela enfunada para marear, uma rede para pescar e agora
filhos para o ajudar. Estão crescendo fortes e saudáveis que dá gosto. Vai
pescando ao largo de Maputo, lança rede, puxa rede, quando sai do mar, separa o
pescado e dá as ordens:
-Feito na Areia leva
esse no mercado e entrega para a peixeira Zubaida. O preço está feito. Traz o
dinheiro. Feito no Barco, tenta vender esse aí na beira da estrada. Ata tudo
com essa corda aí e pega pendurado pelo rabo. O preço é o de sempre.
E vende Peixe
Papagaio, Vermelhão, Palmetas, Pargos e Chireuas. Quando aparece um Serra, leva
para casa e entrega para Generosa.
-Para a mãe dos meus
filhos!
-Quais?
-Como quais?
-Os Feitos ou os por
fazer?
Mergulharam nos
braços um do outro ali mesmo, na cozinha, o sal dele e o açúcar dela bailaram
na tarde quente e húmida da Macaneta e quando a criança nasceu, o nome estava
há muito escolhido. Por Fazer foi o quarto e último filho de Estendido e
Generosa. Nada na vida dos outros lhe interessava, tão preenchido andava com a
sua. Quase não os via. Mas no outro dia viu. Chegou à Macaneta mais cedo do que
o costume e a cena era tão violenta que não pôde deixar de ver. Uma carrinha pick up branca deslocava-se na sua direção,
vinda da praia, deslizava rápido e cuspia a areia do chão para o ar, lá dentro,
um português gritando e gesticulando, dando murros no volante enquanto
conduzia. A seu lado, uma mulher branca lavada em lágrimas, o horror espelhado
na face, as mãos levantando-se tentando esconder a dor e chorava. Chorava tão
alto que ele conseguia ouvi-la do lado de fora das janelas fechadas. Quando acabou de ver, sentiu-se feliz por ter a sua vida e não a
dos outros. Nesse dia perdeu tempo olhando Generosa na cozinha, conversou com
os filhos e deu-lhes conselhos para a vida. Deitou-se feliz e sereno e de manhã
quando o seu barco saiu para o mar com dois jovens a manobrá-lo, o mundo não
reparou que faltava Estendido nele. Só Generosa e os meninos sabiam. Ela
perguntou-lhe:
-Não vais no mar,
hoje, meu Estendido?
Ele não respondeu
porque os falecidos não falam. Não pôde dizer-lhe que tinha vivido feliz, que
tinha morrido feliz, que tinha morrido quando quisera e antes que alguém lhe
pudesse estragar essa felicidade. Não pôde
dizer-lhe que não quereria, nunca, outra mulher, nem outros filhos, nem outra
vida, não pôde dizer-lhe que morreu porque quis, para preservar a felicidade em
vida. Não pôde dizer-lho, mas ela soube. Onde está Generosa e Estendido não
cabe mais ninguém.
António Manuel
Batista nasceu no Porto. Ainda na
barriga da mãe, anunciara ao que vinha. Cedo se sentiu a criança mexer e
revoltava-se todos os dias e pontapeava a barriga redonda e empinada. Cresceu
endiabrado. Participava em tudo o que era atividade, dava água pela barba aos
professores, era dinâmico e irrequieto, impetuoso no gesto e vigoroso na
vontade. Cedo se percebeu que não tinha pachorra para enamoramentos alongados e
enfeitados com pormenores. Chegava ao pé das raparigas e dizia o que queria.
Tinha a arte ludibriosa de ver vantagens em tudo, até numa negação, até numa
derrota. Quis jogar à bola, mas cedo se percebeu que era indisciplinado. Andar
à bofetada com colegas de equipa não era prática aconselhável ao sucesso no
desporto. Cresceu entroncado, largo de costas e mãos amplas. Com facilidade lhe
fugiam para a cara dos outros. E, contudo, tinha caráter. Sabia o que
queria, quando queria, como queria e possuía a arte de descobrir como ter o que
queria. Era de uma determinação férrea. Desconhecia por completo o que
significava desistir. E explodia. Fosse em gestos de ternura, fosse em gritos
autoritários e zangados. Quando percebeu que a escola iria ser um calvário,
quis aprender algo prático, inscreveu-se num curso técnico-profissional de
eletrotecnia e, assim que se apanhou com a habilitação na mão, começou a
trabalhar que nem um louco. A carteira profissional chegou em pouco tempo e um
emprego estável também. Não gostava de esperar que as coisas lhe acontecessem e
assim que percebeu que a crise em Portugal o poderia prejudicar, assim que
pressentiu a sombra do desemprego, tratou de se informar, de ver outras
possibilidades. Um dia, estava a jantar com a sua doce Susana, e anunciou-lhe:
-Vamos para
Moçambique!
-Hã? Estás-me a
perguntar?
-Não. Estou-te a
dizer.
-E já me perguntaste
se eu queria?
-Se não quiseres,
ficas.
Susana Vital era de
Gaia. Vivia do outro lado do rio. Conheceu-o num torneio de futebol entre
escolas. Quando lhe disseram que ela não era miúda para ele, António tomou-a
para si em menos de um fósforo. Ela ainda resistiu. Percebeu aquela vertigem de
inquietude e certa brusquidão no trato, mas admirou-lhe a coragem e a
determinação. Apaixonou-se. Andaram namorando durante o tempo de escola até que
ele decidiu casar e ter filhos. E teve. Dois. Um menino primeiro. Uma menina
depois. Educava-os com veemência e um rigor exagerado que Susana atenuava com
carinho e ternura. Amava-o a ponto de tudo. Tudo faria por ele como estava
certa de que a dedicação que ele lhe demonstrava indicava que também António
faria tudo por ela. E por isso aceitou ir para Moçambique. Três meses depois.
António assim decidiu:
-Sei lá se aquilo é
terra para ti. És flor de estufa como a tua mãe. Vou à frente. Arranjo casa.
Preparo as coisas e depois segues para lá.
-Posso trabalhar…
quero trabalhar…
-No início é melhor
não. Temos de pensar nas crianças e é preciso alguém que cuide da casa. Quando
assentarmos, trabalhas. Ganhas para as tuas coisas.
Quando Susana foi
ter com ele, António tirou duas semanas de férias e mostrou-lhe Maputo, como é
que a cidade funcionava, os costumes, as avenidas principais, onde ficavam as
instituições. Tinha alugado uma vivenda na rua de França e contratara uma
empregada e uma menina para a ajudar com os filhos. Na segunda semana levou-a
Inhambane, mostrou-lhe a Praia da Barra, o Tofo, o Tofinho, a Praia dos
Coqueiros. Na terceira semana divorciou-se dela. Por mais tempo que passe, por
mais vida que viva, Susana não consegue esquecer-se desse dia. Já lá vão quatro
anos. Tudo parece tão distante agora. Finalmente, olha para trás no tempo com
alguma tranquilidade. A vida recomposta das coisas materiais e reequilibrada
nos afetos. Os dos filhos e os desse homem tranquilo e pacífico que lhe entrou
pela vida dentro da forma mais inesperada possível. Tudo parece tão distante…
Lembra-se bem. António mostrara-lhe a cidade conduzindo frenético pelo trânsito
de Maputo, levara-a ao Zambi, à Cristal, ao Mar na Brasa e depois foram a
Inhambane. Ficaram na Casa do Capitão e ela queria um tempo para contemplar a
baía dos flamingos e ele sempre inquieto a puxá-la para todo o lado. Dois dias
depois de regressarem do passeio, levou-a à Macaneta. Atravessou a carrinha
na jangada, conduziu pela areia e estacionou o carro junto à praia. Caminharam
lado a lado com o mar a vir beijar-lhes os pés e quando ela se quis pendurar no
pescoço dele para o beijar, ele segurou-lhe os braços e disse:
-Tu sabes que eu sou
um tipo honesto. Não sou capaz de fingimentos. Tenho outra pessoa. Gosto dela.
É irrequieta como eu. E gosta de mim. Eu sei que pode parecer-te repentino…
-Repentino? Tu achas
que é o repente que me preocupa? Nós mudámos toda a nossa vida para esta terra!
Os nossos filhos estão cá. Longe dos avós, estamos longe de tudo e de todos, eu
mal me oriento na cidade, abdiquei de tudo por ti, por nós… e tu achas que me
preocupa o repente… Antes fingisses, seu canalha! Antes fingisses e ao menos
cuidasses da tua mulher e dos teus filhos!
Enfiaram-se na
carrinha, ela ralhando com ele enquanto chorava convulsamente a sua desgraça,
ele tentou acalmar-se, mas acabou exaltando-se com as acusações e breve começou
a responder-lhes. Susana lembra-se com clareza da violência dessa discussão.
Lembra-se das lágrimas lhe correrem pela face, lembra-se dos seus gritos, dos
gritos dele, dos murros no volante e lembra-se do ar aterrorizado de um
pescador, na beira da estrada, vendo-os passar com um peixe na mão. Na altura
não soube o que era, nem isso interessava. Mais tarde, rememorando esses
momentos de sofrimento e aprendizagem, iria jurar que era um peixe Serra.
Quando a desgraça se abateu sobre si, procurou forças onde as não sabia ter.
António tinha-lhe alugado um pequeno apartamento na Mao Tse Tung. Pagara três
meses de renda para ela se recompor. Ela conseguiu trabalho, mas não com
vencimento para sustentar aquela casa. Mudou-se para um apartamento mais
pequenino nos prédios da Coop, dormiam em esteiras no chão cobertas com mantas
e tapavam-se com lençóis. Deslocava-se a pé e no chapa. Mês a mês foi
recuperando a força, reafirmando a dignidade e reconstruindo a vida. Primeiro,
uma mesa para a cozinha, depois, pratos e talheres, depois, umas roupas de
corpo. Não se importava de comprar nas calamidades. Mais tarde, já a vida lhe
corria bem, e ainda lá ia. Ficara-lhe o hábito de caminhar por entre as pessoas
na avenida da Guerra Popular. Depois, uns lençóis novos, depois, uma cama para
as crianças, e material escolar, e uma visita ao médico num mês em que um
problema de saúde lhe estragara as contas, e um frigorífico e um dia houve, dois
anos depois, em que comprou uma televisão e fizeram uma festa.
A sua cama
esperou quase três anos. E quando conseguiu dinheiro para ela, foi uma vitória.
Como se oferecesse um presente de rainha a si mesma. Como se, erguendo o seu
corpo da esteira para a cama, se levantasse do chão como no título do livro do
escritor. Apanhou o chapa, levava um sorriso nos lábios, saiu na 24 de julho,
mesmo ao pé dos vendedores de móveis junto à rotunda da Matola. Começou a ver
camas e mesas de cabeceira e a avaliar o preço delas cotejando-o com o seu
orçamento. Eram sólidas! E algumas com recorte interessante ainda que de
acabamentos toscos. E deslocava-se tranquila, falando com os vendedores,
tratando-os por tu. E encontrou uma que lhe pareceu diferente das outras. Era
como se fosse mais do que uma cama. Era uma peça de madeira que queria contar
uma história. Tinha arte. Divisavam-se figuras humanas por entre uma folhagem.
Eram três casais. Um de jovens, um de adultos, um de idosos. Estava um miúdo
junto à cama e ela perguntou:
-Quanto vale?
-Dez mil.
-É muito.
-Não tem desconto.
-Quem fez?
-Foi ele. Respondeu
o miúdo apontando para o interior de uma pequena oficina.
Ela foi lá:
-Foste tu que
fizeste?
-Fui.
-Está caro.
-Depende…
-De quê?
-De querer
pagar só a cama ou a história com ela…
-É muito bonita, mas
dez mil é muito.
-Quanto oferece?
-Sete e quinhentos.
-Está curto. Aumenta
lá…
-Não tenho…
-Fazemos assim. Se
adivinhar a história desses casais, pode levar por sete e quinhentos…
-Não são casais. É
um casal partilhando a vida desde a juventude até à velhice. A Natureza é a
harmonia dessa vida em conjunto…
-Xiii, não estou a lhe aguentar… pode levar…
-Toma. Estão aí oito
mil.
-Eh, pensei que só
tinha sete e quinhentos.
-Era margem de
negócio para comprar uma cama, mas isso não é uma cama, é arte… entregas?
-Claro.
É um quarto pintado
de branco. Tem uns cortinados em azul clarinho como o céu e, tratando-se de
Moçambique, também como o mar. Tem pouca coisa. Uma cadeira, uma mesinha de
cabeceira, uma cama com três casais envoltos em folhas a enleá-los, esculpidos
na madeira sólida da cabeceira. Nessa cama está um colchão. Nesse colchão não tem lençóis.
Não houve tempo. Tem só um corpo musculado e negro de um artista se entregando
na carne branca de uma mulher renascida. Acaricia-lhe a pele como faz com a
madeira quando lhe quer fazer nascer uma ideia. E ela mexe-se como se a ideia
estivesse nascendo em si.
-Como te chamas.
Sussurrou no ouvido dele.
-Sozinho. E
sentiu-se nascer pela quarta vez na sua vida.
Ao fundo da cama tem
uma mesinha pequenina e baixa. Em cima dela está uma escultura em madeira.
Sozinho trouxe como presente para a mulher que sabe ler histórias nas imagens
talhadas na lenha. É o mar rebentando devagarinho na areia, um pescador com ar feliz
e realizado puxando sua rede com água pela cintura e dois meninos esperando por
ele de braços estendidos.
jpv