As cores do galo negro

[Este texto foi escrito pouco depois da captura e morte de Jonas Savimbi, em Fevereiro de 2002, mas só viria a ser publicado em Novembro desse ano. Nesse Novembro, O presidente angolano, José Eduardo dos Santos, defende a entrega ao seu povo de um Prémio Nobel da Paz; em sessão extraordinária, o parlamento iraquiano reune para discutir a resolução da ONU para o desarmamento do Iraque; divulga-se que a rede Al-Qaeda, de Osama bin Laden, planeou, em 1999, assassinar o Papa Joao Paulo II, aquando da sua visita às Filipinas. O presumível atentado não foi consumado, dado que a viagem foi cancelada devido a problemas de saúde do Papa. Em Portugal, realizou-se um encontro de autarcas portugueses para discutir o Orçamento de Estado para 2003. A Associação Nacional de Munícipios criticou já o Orçamento, considerando que este penaliza o poder local.
Data da primeira publicação: 15 de Novembro de 2002]


As cores do galo negro

Olá mana.

O título deste mail é o que parece mas não é o que parece.

É evidente que este meu pensamento não está imune à recente morte de Jonas Savimbi mas as memórias que tudo isto me despertou são bem menos ditadas pela política e pela invasão mediática do que pela ternura das crianças que já não somos. Sabes, não gostei de ver, em tudo quanto é televisão, o corpo de um homem como se fosse o de um animal capturado, ao jeito de um prémio de caça. Sobretudo porque esse homem fez parte da construção de um colorido que povoou os nossos dias de meninos e que eu relembro egoistamente para nós. Sabes, o galo negro, naqueles dias, não era negro. Tinha a pujança do encarnado e a beleza natural do verde e em cada autocolante, em cada bandeira, eu juraria ter visto um galo de muitas cores; as cores da felicidade ingénua de uma criança que acredita que tudo está bem e vai continuar bem. Não estava e não continuou. Mas isso não importa, agora! Sei que as cores do galo negro não estavam sozinhas, havia outros partidos, com outras cores e outras letras de que eu ignorava o significado. Para ser sincero eu julgava que as pessoas escolhiam as letras mais bonitas para pôr nas bandeiras e gritar pelas ruas e ouvia emepélá! emepélá! fénélá! fénélá! unita! unita! Como se fossem canções de um novo arraial a invadir os meus dias. E lembro-me do nosso avô num carro, pelas ruas, gritando e cantando e ele era tão bom e amigo que, se estava fazendo aquilo, então é porque se tratava de uma festa! Temi, depois, as conversas muito sérias em torno da mesa do jantar. Conversas que falavam de perigos e mudanças, de partidas e chegadas, conversas com nomes impronunciáveis de homens que queriam o que outros não queriam, de homens que faziam o que outros deveriam ter feito e lembro-me de palavras que surgiam novas como pedradas assustadoras na calma água dos meus dias: boato! Colono! indepen... esta era impossível para mim. E lembro-me de um senhor que era careca! De dia voltávamos à festa das ruas e às montras das lojas pintadas com grandes palavras que os donos lavavam a pano. E passavam carros em cantorias e gritarias e o galo sempre presente com suas cores de arco-íris. Só mais tarde, já a ingenuidade de menino tinha partido há muito, já a gaivota que voava com muito mais graça na tua boca – sempre sussurrado não fosse alguém ouvir e levar a mal - tinha quebrado a asa na desilusão de um mundo desfeito, já as longas mesas redondas de senhores a preto e branco tinham deixado de nos ocupar o serão, eu encontrei um velho autocolante, de brilho perdido, e pensei: "este tem o galo preto?" e remexi a papelada toda em vão até que algures numa página perdida de um manual cossado pelo uso eu constatei atónito: "então não é que o galo é mesmo preto?!"

E os dias da minha vida andaram repentinamente para trás como quem rebobina uma cassete e cheguei às ruas da Gabela, e aos carros em cantoria e às pessoas bradando, na mão de um, uma bandeira amarela, na de outro, uma encarnada e, na estrada, junto ao passeio, vi um autocolante, e a minha alma disse-me o que durante tanto tempo me ocultara: o galo era mesmo preto! Fiquei sem saber se queria voltar a viver aqueles dias como tantas vezes desejara em sonhos acordados, de olhos no tecto, à espera do sono! Mas queria, nem que fosse pelos odores, nem que fosse pela voz do pai dizendo, calma, que acreditava, nem que fosse pelos olhos da mãe duvidosos de tanta felicidade, ela que não via que as pessoas dos filmes fossem mais felizes do que ela! Nem que fosse por ver-te baixar, menina-bébé de ano e picos, firmares-te nas pernas, acocorares-te, num equilíbrio periclitante e apontares segura para um autocolante que estava no chão: "dá! dá!". Mas o galo era negro!

Não quero saber das políticas dos outros. Não me interessam os nomes que chamam à Paz. Interessa-me só que fui feliz, que te vi ser feliz, que tinha um pai forte e corajoso que me havia de proteger de tudo e uma mãe quente e fofinha que me tinha prometido que eu não precisava de ir à tropa. E não fui! Interessa-me só que a imagem de Jonas Savimbi baleado, desarranjado, indignamente estirado numa prancha de madeira, improvisada, fez morrer em mim o que restava do colorido desse arco-íris dos tempos da nossa meninice. Eu que até juraria que aquele galo tinha cantado!
Beijo.
Mano.

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