As Chamas da Impunidade

[Continua, em Portugal, uma das mais violentas vagas de incêndios. Para além da suspeita de fogo criminoso, vêm a lume, na imprensa, notícias que envolvem interesses paralelos como seja o comércio de aluguer de helicópteros para o combate às chamas.

[Data da primeira publicação: 5 de Setembro de 2003]

As Chamas da Impunidade
Olá Mana,
As linhas que te escrevo hoje são de tristeza e apreensão.

Invertendo um pouco o que é habitual, não fui ao baú poeirento e nublado da memória arrancar uma qualquer lembrança preciosa e adormecida para depois a rememorar contigo até ao presente e reflectir sobre ele. Desta vez, a força e a pujança dos acontecimentos que marcaram o Verão português fez-me começar por este mesmo presente e as memórias vieram depois a tropel e, também elas, violentas.
Já não posso dizer como tanto se disse e escreveu que “Portugal está a arder”. Neste momento, o destino limita-me as palavras a um odor a cinza e a morte, a uma cor negra e desgraçada e a expressão que me atormenta a alma é tão só “já ardeu!” Como quase todos, sinto uma impotência e uma revolta viscerais que me saem das entranhas pela lágrima, pelo grito surdo, pela contemplação absurda de uma imagem inverosímil há um mês atrás e real de arrepiar, hoje. No regresso de férias vi o inferno, os meus olhos não queriam ver o que o cérebro me estava dizendo que viam. Entre Portalegre e Abrantes numa extensão só mensurável pela expressão “até onde a vista alcança” tudo está queimado, seco, negro, morto. E contudo, este horror era só uma parcela do verdadeiro desastre, da tragédia inteira que ceifou flora, fauna, habitações e vidas humanas. Ainda que muito nos custe admitir a verdade é que o Portugal verdejante de pinhais de beira da estrada a festejar piqueniques está a agonizar em cinzas.

Como é costume, como é natural e como é humanamente desejável multiplicaram-se os esforços e as ajudas e as tentativas de atenuar a miséria que o fogo semeou. Nisto, portugueses, somos bons. No remediar humanitário, no estender de mão. Sem dúvida. Não é isto que me preocupa. O que realmente me preocupa é a impunidade. Pelo que leio nos jornais e vejo na televisão, toda a gente sabe que há “esquemas” que envolvem uns e outros, proprietários de aviões, madeireiros, investidores em terra, construtores de grandes complexos turísticos. Só nunca vejo nem os uns nem os outros. A Culpa, em Portugal, raramente tem rosto embora se saiba que tem mão criminosa! Os suspeitos entram e saem das cadeias mais depressa do que os doentes das filas de espera nos hospitais. Começam por ser grandes criminosos e afinal nunca o eram. Se reparares bem, mana, o fogo que devorou o nosso país este Verão em proporções inimagináveis foi todo acidental, obra do acaso, e, mais abstracto ainda, função do azar.
Faço este parágrafo propositadamente para te escrever a minha tese que, de resto, é curta e linear: o que consumiu Portugal foram as Chamas da Impunidade. O saber antecipado do funcionamento entorpecido do sistema de prevenção, do sistema de vigilância, do sistema policial, judicial e punitivo. Já disse. E chega-me. Claro que podia alongar-me com teses do género: o dinheiro que se gastou em estádios de futebol… mas não vamos por aí que essa conversa é fácil, facilmente polémica, não leva a lado nenhum e distrai-nos do assunto central.
Vamos às memórias.
Se bem te lembras, durante muitos anos, quando chegava sábado depois da hora do almoço, acomodávamo-nos na 4L do pai e fazíamos uma pequena grande viagem entre Coimbra e São Pedro de Alva. Na altura aquilo era coisa para quarenta quilómetros e cerca de uma hora e quinze minutos de espectáculo. Percorríamos o Mondego “ao contrário” sem percebermos bem se era ele que acompanhava a estrada ou a estrada que o acompanhava a ele. Quase invariavelmente parávamos na fonte mais para saborear a paisagem do que a água. A montanha estendia-se esplendorosa do rio até ao céu e o fim-de-semana começava da melhor forma possível. Em tons de verde e azul, odores formidáveis, e uma banda sonora de marulhar de águas e conversas vadias da passarada. Torres do Mondego, Rebordosa, Penacova, Miro, Friúmes, Porto da Raiva, Silveirinho e por fim São Pedro. Era um caminho de comunhão com a natureza, de cortar a respiração. Nunca cheguei a perceber se demorávamos tanto a percorrer tão pouco por causa da estrada ser mazinha ou se era o pai que, em vez de conduzir o carro, saboreava a paisagem… foi observando esta paisagem que o pai contou uma história que se passara numa terra ali da região. Um homem havia pegado fogo à mata. Apanharam-no. Foi preso. Saiu rapidamente. Apanhou o autocarro para casa. O povo esperou-o. Tal como o fogo que consumiu a nossa floresta este ano, a sua vida fora consumida. Tal como a Culpa dos culpados que estão a assassinar o nosso país, a Culpa da sua morte nunca teve rosto. Todos lá estavam mas ninguém viu nada. O pai contou a história uma única vez e fê-lo com tom sério e grave. O suficiente para eu perceber que os seus contornos morais não eram de perfil fácil. Aquilo não estava certo, na altura, como o não estaria hoje. Mas também não estava errado!

Beijo, mano.

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