Camisa branca, gravata preta

[Portugal desiste de referendo sobre a legalização do aborto. Morte do desenhista português Eduardo Teixeira Coelho. Coreia do Norte testa míssil (atinge o Mar do Japão). Casamento da atriz Renée Zellweger com o cantor Kenny Chesney. Acordo sobre Cooperação Econômica e Comercial entre Angola e Argentina. Tony Blair anuncia formação de seu novo governo.
[Data da primeira publicação: 6 de Maio de 2005]

Camisa branca, gravata preta

Querida mana,

Um destes dias, via correr na televisão a vida dos outros, em torno dos problemas dos outros, à volta das circunstâncias dos outros e ocorreu-me, a propósito do dito filme, que as famílias fazem movimentos elípticos em torno dos sóis que possuem. Seja porque há elementos mais aglutinadores de atenções, seja porque os há com mais capacidade de investimento ou, simplesmente, porque têm mais disponibilidade, o certo é que parecem ter, certos tios, certos pais, certos avós, certos primos, a capacidade de juntar os outros todos à sua volta. Tirando isto, tais movimentos vão-se regendo pelas situações inevitáveis: aquelas em que se brinda a vida com vida e aquelas em que nos curvamos perante a finalidade momentânea da morte, com respeito.
Emergiam do ecrã os tons brancos e alegres dos casamentos, dos baptizados, dos natais, das festas de anos e emergiam, pesados e graves, os tons cinzentos das marchas fúnebres que carregam o corpo de uns e as lágrimas dos outros. Mostrava a fita, como me lembro de ver na nossa família, camisas brancas e gravatas pretas a dominar o que se via e o que se sentia. Ainda me lembro, nestas ocasiões mais tristes, da mãe a ajeitar o nó da gravata ao pai como se fosse ela o seu primeiro, último, e mais fiel espelho. A gravata nascera para aquilo. Só fazia funerais e o pai, assim preta, só tinha aquela como que anunciando à vida que não há que dar muito espaço de manobra à morte. Os momentos ficavam-se por isto. Marcados pelo branco das camisas em pano de fundo ao negro das gravatas e o mais que se sentia devia estar daquelas cores, devia ser sentido na triste harmonia entre o que vai lá dentro e o que se passa cá fora.

Um dia destes, por infortúnio, fui a um funeral. Daqueles a que vamos por obrigação e respeito mas em que o cinzento nos não tolda muito. É uma perda. É uma tristeza. Mas não é uma mágoa profunda. Essa fica para os entes queridos assim nomeados nas coroas de flores. E vi, com outra tristeza, uma tristeza mais moral que funérea, a passerelle de cores alegres e primaveris que desfilou diante dos meus olhos. E eu, ali quieto, de camisa branca e gravata preta, senti-me demodé, desenquadrado e senti que o que se sentia não estava cinzento. Penso, mana, que quando se vai a um funeral não se pode ir como se vai ao cinema ou a um casamento. Não me preocupou tanto o aparato alegre das cores. Preocupou-me mais o que estava a nascer por debaixo delas. Será mana, que quem não respeita a morte consegue ainda respeitar a vida? Será que, como as estações do ano, andamos a inverter o sol do sorriso com as lágrimas do choro?

Eu fiquei demodé, como o nosso pai, de camisa branca e gravata preta. Nestas coisas que se sentem por dentro e se vêem por fora vou ficar sempre demodé.

Beijo
Mano

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