De Negro Vestida - I

Rotinas – I
A cena que agora presenciamos e nos cabe narrar é assaz curiosa. Temos nós, contadores de estórias, este mágico poder de tudo ver e tudo saber só para dar a conhecer. E, em calhando, até a intimidade alheia devassamos. É o que faremos agora. Isto é uma casa. E há nesta casa um quarto e há neste quarto uma cama e estão nesta cama duas pessoas. Um homem e uma mulher. Ela por baixo. Ele por cima. E nasce aqui a curiosidade. É que não estão fazendo sexo e amor também não. Estão os dois vivos. Ela planeando a lida da casa. A roupa que os filhos vestirão pela manhã. E já decidiu o que será o almoço no dia seguinte quando ele vier do atelier. Ele está balançando em cima dela sem fulgor nem paixão. Para sexo, queria-se outra energia nos gestos, outra habilidade no inflamar das carícias, outra luxúria entre dentes. Para amor, outra entrega bastaria mas não há aqui nada disso. E a razão é simples. Estão estes dois cumprindo um dever. Ela cumpre o dever de esposa dedicada, sempre pronta a receber em si o marido porque assim lhe foi dito que seria e assim tem sido nos últimos vinte e dois anos. Quer dizer, sempre, sempre, também não que têm as mulheres muitas formas de governar uma casa e uma relação com a suprema e subtil capacidade de deixar os homens acreditar que são eles quem está controlando. Ainda assim, ela preza a tranquilidade do lar e sabe que os humores do marido se alteram quando se não despede dos sexuais líquidos que parecem nascer-lhe no corpo todo para se virem alojar entre pernas. E lá lhe vai dando a ração suficiente para que se não queixe mas também se não enfarte. Não lhe marca os eventos na agenda para que se não aperceba da rotina mas sabe muito bem os dias em que menos lhe incomoda ser incomodada.

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O Romance "De Negro Vestida" foi publicado, capítulo a capítulo, neste blogue, entre 26 de janeiro de 2010 e 22 de abril de 2011.

Agora que conhecerá outros voos, nomeadamente, a publicação em livro, deixamos aqui um excerto de cada capítulo e convidamos todos os amigos e leitores a adquirirem o livro.

Obrigado pela vossa dedicação.

Setembro de 2013


João Paulo Videira

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