Estórias ao Acaso: Noite Fria (XXIX)

Há coisas que vêm de dentro. Há estados de alma que nos habitam e contaminam o que nos circunda. O dia é de sol enfeitado por uma brisa suave. Não fosse o calendário ser de dias curtos e frios e julgaríamos estar na Primavera. Mas este dia poderia ser de chuva miúda, de águas torrenciais, de ventos ciclónicos, granizo, neve, cinzento e sombrio ou qualquer outra manifestação climatérica que a Natureza decidisse que, à volta de Maria de Fátima, haveria sempre luz e sol e brilho.
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Saíu há pouco do hotel e ainda sente o toque do rapaz musculado na sua carne, ainda ouve o seu murmurar sensual, ainda sente a sua respiração junto ao pescoço e, contudo, já o esqueceu. Caminha feliz e inconsciente pela rua. Está entregue só a si, às suas opções e aos seus caprichos e vive confortável com isso. É estranha esta felicidade de quem se limita a vivê-la sem saber de onde vem e porque vem. Ou a única. Cremos mesmo que, no momento em que soubesse por que era feliz, Maria de Fátima deixaria de sê-lo. Reside na espontaneidade do que sente não interrogado nem perscrutado pela consciência este caminhar ditoso pela rua. Há no rosto de Maria de Fátima uma alegria específica e definida. A alegria da liberdade que veio até si. Maria de Fátima conhece bem o seu corpo e os desejos dele e, mais do que isso, sabe como satisfazê-lo. Assume a sua condição e vive a verdade dela. Em si nunca haverá uma luta entre o corpo e a mente porque estará esta sempre servindo aquele. Sem remorsos. As suas opções são simples. Usufrui da vida como ela se lhe apresenta e afasta o complexo de si como quem afasta um mau presságio.
-As mentes mais elaboradas e a habituadas a esquadrinhar no comportamento humano os pecados e os castigos para eles, distantes, por natureza, da matriz de Maria de Fátima, encontram-lhe com facilidade o vício e a imoralidade triunfando sobre o caminho difícil da virtude moral. Acontece, porém, que não haverá, nunca, culpa nem imoralidade onde vive a inconsciência e a inocência. Esta mulher é promíscua mas não o sabe. Apenas conhece de si que é como é, que gosta do que gosta, que vive como sabe. Essa é a sua verdade e a sua religião e vive de acordo com elas. Se há crime nesta mulher, não pode haver castigo para ele porque é um crime sem culpa. Maria de Fátima tem a coragem dos seus defeitos e das suas virtudes e é genuína nos seus gestos. Teve a força e a clarividência de mostrar a José António que a sua vida em conjunto não era o caminho de nenhum dos dois. Mostrou-lhe o dele e assumiu o seu. Decidiu bem porque decidiu abraçar a vida em harmonia com a sua natureza.
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Maria de Fátima tinha um compromisso. Foi com os filhos ao cinema. Eram desenhos animados, pipocas e coca-cola. Foi a tarde perfeita para as crianças e a mãe delas. Hoje é dia de jantarem os miúdos com José António. Maria de Fátima entrega-os ao pai ao fim da tarde, sem rancor, cumprindo o estipulado e depois irá jantar com um amigo. Não sabe no que dará a noite mas não perde tempo a pensar nisso. Será o que for. Dará o que der. Não teme nem hesita. A vida é bela, é única, é sua e está só à espera de ser vivida...
-Quando Maria de Fátima mergulha na noite, pode ser a mais inconsciente das criaturas que a habitam mas é também a mais segura.

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