Estórias ao Acaso: Noite Fria (XXX)

Tem a humana natureza particularidades que vamos assinalando por interesse e curiosidade ao longo desta estória. Uma delas, que agora nos ocorre, tem a ver com atribuirmos tempo errados a acontecimentos e fenómenos, assumindo uma soma e não descontando os intervalos. Como vai o discurso complexo, sente o autor necessidade de exemplificar. Por exemplo, pode uma pessoa dizer Demorei três meses a ler este livro, quando, na verdade, terá demorado umas noventa e seis horas que não são mais do que quatro dias. Acontece isto porque aquele livro andou fazendo parte das suas vivências ao longo dos três meses mas muitas horas foram passadas no banco de trás do carro, debaixo do braço, em cima da mesa-de-cabeceira, adormecido no sofá da sala, dentro de uma pasta. O importante foi a centralidade que teve na nossa vida e não o tempo efectivo que estivemos folheando e saboreando o folhear, amando as personagens, repreendendo-as, rindo com elas e com elas chorando e despedindo-nos no fim, umas vezes com saudade, outras, com alívio, outras ainda, com indiferença. Vem isto a propósito do último dia em que os amantes das palavras, com as palavras, pelas palavras estiveram juntos no jardim. Ela, porque o não podia ter inteiro, retalhado e dividido o não quis que não se retalha o amor. E disse o que tinha a dizer que era o que lhe ia na razão porque no coração outras razões moravam. E deixou-o entregue às suas opções sentado num banco de jardim enquanto se afastava chorando. Foram essas lágrimas que, como o livro do exemplo, lhe andaram bailando nos olhos e escorrendo pela face noites seguidas, dias inteiros, meses a fio. Descontando os referidos intervalos. Os das lágrimas que o sofrer, esse, não conseguiu ela intervalá-lo. Esta mulher não viveu. Arrastou-se. Sofreu dessa doença maligna a que andam dando nomes complicados e receitando drogas e terapias diversas e a que podiam só chamar de solidão e tratar com partilha e comunhão. E sentiu vezes múltiplas em ocasiões diversas o impulso natural de falar com ele, telefonar-lhe, mas sentiu sempre que isso já fizera uma vez e recordou-se da humilhação por que passara e relembrou-se a si mesma que era agora a vez dele fazer algo se algo quisesse fazer. E conteve-se. E por estas alturas andava ele lutando pela condição de poder tê-la com dignidade reconhecida em papéis. E por isso mesmo, por se querer apresentar livre e pronto para a amar, não lhe foi dizendo nada também. E assim se mata um amor. Não amando. Sim, que amar não é gostar e calar. Um amor silenciado é um amor que não viu a luz do dia nem dos olhos de quem se ama. Como diz a canção: Silence like a cancer grows. E cresceu. E foi emudecendo um amor que havia gritado bem alto a sua vontade de existir. E os olhos dela que andavam fechados para o mundo, porque o mundo se não arreda de onde está, foram-se reabrindo lentamente para ele. Primeiro, não querendo ver, depois, espreitando e finalmente olhando de novo a vida a ser vivida.
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Acontece, pois, outra particularidade que andamos observando no comportamento dos humanos que é conseguirem adiar as coisas importantes e os importantes gestos e viverem presos dos pequenos, incapazes de os adiar. Adia-se a solidariedade. Não se adia uma reunião importantíssima de condóminos. Adia-se a educação. Não se adia a inadiável visita ao centro comercial. Adia-se o pensar. Não se adia o comer. Adia-se o ser. Não se adia o existir. E foi por via de um inadiável pequeno-almoço que ela entrou na pastelaria. Daquelas tradicionais, com o balcão envidraçado de forma arredondada, máquina de café com dourados, mesas diversas, empregadas com uma bata às risquinhas verticais brancas e cor-de-rosa e um enorme vidro com três mesinhas de dois lugares a permitir uma bica e um pastel de nata acompanhados da luz e da vista para o passar urbano das gentes. Nenhuma das três mesas estava ocupada, tão jovem era o dia e fresca a manhã. Ela sentou-se na mesinha mais distante da porta e nem sequer foi para evitar o frio do abre-e-fecha. Foi só para distanciar-se um pouco mais de qualquer encontro com um conhecido que estivesse obrigada a cumprimentar. E aconteceu o que tantas vezes acontece mas nem sempre com as repercussões que aqui relataremos. Entraram mais pessoas, já ela estava no fim da meia torrada e com o galão ao fim a chegar. E foram ocupando as mesas e as cadeiras que, em falindo os outros negócios todos, este do comer e do beber, por pouco que renda, sempre há-de resistir dada a sua natureza. E entrou também um homem com calças de bombazine, uma camisa de flanela mal passada e um casaco castanho de sebo, assim chamado. Transportava um ar dócil e o corpo curvado para a frente como quem carrega os problemas todos do mundo às costas. E mesmo que não sejam todos os do mundo, pode ser que sejam só os seus mas estarem esses a pesar-lhe demasiado. E pediu ele ao balcão a bica e o pastel de nata a que nos referimos há pouco. Pagou. Pegou na bica pelo pires com uma mão e com a outra trazia o pastel de nata num pratinho igual. Procurou com o olhar uma das três mesinhas junto ao imenso vidro transparente e curioso. Pareceu mesmo olhar um pouco mais para a mesinha mais distante da porta. Estavam todas ocupadas. Levantou o queixo observando toda a sala mas os lugares estavam tomados. Fez o que é natural fazer-se nestas circunstâncias. Voltou-se para o balcão a quem planeava devolver os pires e comer de pé. Ia a meio da rotação de regresso quando ouviu uma voz feminina de tom suave e doce:
- Sente-se aqui.
Ele não imaginou que fosse para si que falavam mas olhou, como olhamos sempre que se fala num tom acima do burburinho do espaço em que estamos, na direcção da voz e reparou com agrado que era consigo que a mulher bonita e triste falava.
- Sim, sente-se aqui. Eu só ocupo uma cadeira.
- Calculei que esperasse alguém.
- Não espero. Há muito que deixei de esperar. Só não sabia. Na minha vida há muito tempo que não entra ninguém nem creio que volte a entrar.
Enganou-se ela porque tinha acabado de acontecer o contrário das palavras que proferira e ainda pairavam no ar denso da pastelaria.
- Peço desculpa. Eu não quero incomodá-la.
- Quem lhe pede desculpa sou eu. Primeiro ofereço-lhe um lugar na minha mesa e depois destilo as minhas desavenças com a vida. Sente-se. Esta mesa é a melhor.
- Pois é, costumo sentar-me aqui. Gosto dos cantinhos. São mais acolhedores.
- Exactamente. Recomecemos. Bom dia! Quer fazer-me companhia? Tenho um lugar vago nesta mesa.
- É muito gentil da sua parte, a oferta. Vou aceitá-la. Muito bom dia! O meu nome é José António.

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