De Negro Vestida - VIII

Rotinas – VIII
------O dia amanheceu com gestos pequeninos, miudinhos, como se, por se fazerem menores, se fizessem em menos tempo. Maria de Lurdes põe o mesmo pequeno-almoço na mesa mas põe-no de forma diferente. Não na disposição dos lugares de cada um, nem na festa de luz e cor e cheiros que aviva a mesa, mas na forma menos pausada e mais sussurradamente apressada com que prepara a refeição inaugural do dia. Não pretende dar a ideia de que quer despachá-los para fora de casa, mas dá. É indisfarçável a energia ansiosa que lhe atravessa o brilho do olhar, os gestos nervosos de trazer e levar e quando se cruza com um deles no espaço amplo da cozinha, em vez de esperar tranquilamente, com a tranquilidade que todos lhe reconhecem de mãe e mulher, que passe, apressa-o com um Vá lá, vá lá! fazendo com a mão um gesto de Apressa-te e passa! Lembrando os sinaleiros que noutros tempos serpenteavam a cidade.
------E, à quinta-feira, quando os vê partir, em debandada da sua vida para a vida deles, não sente o rasgar interior nem o impulso de os reter. Larga-os livremente para a liberdade deles que, neste dia, é também a sua. Normalmente, quando sente que já não estão no prédio, exclama Ora, ora… como quem pensa Por onde vou começar a vida que há hoje para viver?
------Ao pequeno-almoço, o marido repetira, como quem confirma, aquilo que diz todas as quintas-feiras à mesa:
------- Hoje é dia de Gininha?
------- Hum, hum…
------Ele já sabia a pergunta e a resposta para ela. Ela já sabia a resposta e a pergunta para ela. Ele sabia, já, que não viria almoçar a casa porque nunca vem. Habituou-se, há muito, a este ritual e respeita-o. Interiormente considera-o como uma espécie de grito do Ipiranga semanal da sua mulher. Admite-lho porque, de quando em vez, também solta o seu.

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O Romance "De Negro Vestida" foi publicado, capítulo a capítulo, neste blogue, entre 26 de janeiro de 2010 e 22 de abril de 2011.

Agora que conhecerá outros voos, nomeadamente, a publicação em livro, deixamos aqui um excerto de cada capítulo e convidamos todos os amigos e leitores a adquirirem o livro.

Obrigado pela vossa dedicação.

Setembro de 2013

João Paulo Videira

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