7/8/2010 - 15:40h. - Agia Roumeli
-O barco parte daqui a 5 minutos. Estou só. Completamente só pela primeira vez desde que chegámos à ilha. A informação é tanta que nem sei por onde começar. Se pelas dores insuportáveis, se pela paisagem assombrosa que me acompanhou ao longo do dia, se pela maravilha que observo agora.
-
Comecemos por aqui. O mar é de um azul indescritível, denso e homogéneo. Acho que parece uma imensa pedra preciosa de tão intenso. À medida que trazemos o olhar para mais perto, vai ficando turquesa e aqui debaixo do barco junto à praia de Agia Roumeli é cristalino e transparente. Esta terra tem meia dúzia de casas, outros tantos carros, dois cafés, uma pensão, um porto e uma praia maravilhosa em forma de baía. É a primeira vez que vejo ao vivo um azul assim. Aqui só se pode vir de barco. Os poucos carros que cá há foram trazidos por este barco e como só aqui há três ruas os carros não são usados para andar aqui mas para levar e trazer produtos para as outras terras. Carregam-nos, levam-nos de barco e depois transportam-se com eles no resto da ilha.
-
A outra forma de cá chegar é vindo a pé. Claro que, para isso, é preciso caminhar ao longo de 18km pelo meio da Serra Branca (Lefka Ôra) atravessando o desfiladeiro de Samaria. Foi o que fiz. Com o Iago. Claro que me esqueci que ele tem 19 anos e eu 42 e uma velha lesão de 26 anos no joelho esquerdo resolveu acordar da sua letargia e fiz 12 dos 18 km com dores horríveis. Não valia a pena queixar-me. Não havia como irem buscar-me! Por outro lado, a paisagem é de tal forma bela e imponente que nunca me ocorreu desistir. De resto, não me serviria de nada! Tomar comprimidos sim, mas não os tinha trazido. O barco partiu agora. O mar é tão azul que até a espuma provocada pelos motores é azulada.
-
Agora vejo Agia Roumeli ao longe. É uma localidadezinha branca, entalada entre uma escarpa com cerca de 500m de altura e o azul intenso do mar.
-Vamos ao dia. Quando o Iago soube que o desfiladeiro de Samaria era transitável, quis vir. Eu ofereci-me para vir com ele pois era uma prova exigente. Ele aceitou mas foi logo informando que ia dormir uma noite em Agia Roumeli para conhecer as pessoas e para voltar no dia seguinte a pé para onde eu vou agora de barco: Xôra Sfakia passando por Lutró. Xôra Sfakia é a localidade mais próxima onde há autocarros. Lutró, tal como Agia Roumeli, não tem acesso rodoviário. É por isso que estou só. Um não veio, decisão prudente e sábia (!), e o outro continua a loucura amanhã com uma caminhada de 24km pela escarpa sobre o mar. Espero que corra bem. Há coisas que temos de fazer na juventude. Esta, ele queria fazê-la. Falar-lhe dos perigos e tentar impedi-lo era inútil.
-
Saímos de casa às 5:30h. Autocarro às 6:30h. e duas horas pela serra acima durante 40km(!) de um caminho estreito e tortuoso onde até um carro passa apertado quanto mais o monstro do autocarro. O motorista parou diversas vezes para se cruzar com outros veículos e para acordar cabras selvagens, chamadas Kri-kri, que vêm dormir para o asfalto e se negam a levantar-se. Aos 2000m de altitude parámos. Não há mais estrada. Depois são 18km a descer até ao mar.
-Tinham-nos avisado do calor, mas como o caminho é muito estreito, entre montanhas e arborizado, o calor não foi um problema. O problema mais sério é o desprendimento de pedras. Estão sempre a cair montanha abaixo. Os tipos, em vez de colocarem protecções, puseram uns sinais a dizer "Grande perigo. Ande depressa." Nós rimo-nos. Se um tipo tiver de levar com um calhau na tola, tanto faz ir depressa como devagar! Ao fim de 1:30h tínhamos feito 6km e essa rapidez inicial foi o meu único erro. Na altura foi com medo de perder o barco mas agora trocava as dores por tê-lo perdido. O chão é muito irregular, feito de rocha solta. Partes do percurso são em leitos de rios que secam no Verão, e o meu joelho esquerdo ressentiu-se. O sétimo quilómetro foi uma tortura. Nesses primeiros 7km houve um rio que se cruzou connosco algumas vezes. Claro que fomos ao banho. A paisagem é verdejante e somos sempre acompanhados pela montanha ao nosso lado e, em muito locais, por cima de nós! É assustadora a forma como a montanha se "dobra" por cima de nós mas muito bonito. Nunca tinha visto nada assim. Entre o quilómetro 7 e o quilómetro 11,5 é a parte mais interessante do percurso, o desfiladeiro propriamente dito, e foi nessa fase que tive mais dores. Mas nem me queixei. Nesses 4,5km vimos a aldeia abandonada de Samaria que dá o nome ao desfiladeiro, andámos pelo rio dentro, tomámos vários banhos gelados, e passámos nos "Portões de Ferro". Não são portões nenhuns, é o nome que deram à parte mais estreita do desfiladeiro. Tem só 3m de largo e cada parede tem mais de 300m de altura. É impressionante. Os últimos 6,5km foram são mais fáceis porque são a direito e o piso é melhor.
-Chegámos a Agia Roumeli ao cabo de 6:15h porque fizemos um intervalo de 15m em Samaria. Não sei se voltarei a fazer este percurso na minha vida, mas gostava. A única coisa que faria diferente, era demorar 8h em vez de 6 e fazer a parte inicial mais devagar. Às vezes pergunto-me porque fazemos estas coisas e acho que é só para testarmos os nossos limites e procurar o desconhecido. Outras vezes, acho que não há razão nenhuma. Temos de o fazer e pronto.
-
Valeu a pena pelo percurso e por ter conhecido Agia Roumeli. Não há ali uma única caixa multibanco e não sei para que é que querem os seis ou sete carros que lá há porque aquilo tem três ruas e o porto. Só se for mesmo para transportarem coisas no barco e levarem para outras zonas da ilha. Mas o mar, meu Deus, o mar é maravilhoso. Deixei a câmara com o Iago, espero que ele faça fotos. Só não sei quanto tempo vou levar a recuperar do joelho mas tenciono colocar gelo logo à noite. Amanhã é dia de dormir muito, ir à praia e atacar novas surpresas gastronómicas. Já chega de esforços físicos. Hahahaha.
------------------------------------
-Nota que não tem nada a ver com nada 1: houve um momento em que chegámos a uma zona a que as pessoas chamam "Santuário de Pedra". Cada pessoa que ali passa faz um pequeno montinho com pedras. Como as pessoas são muitas, toda a encosta está coberta de montinhos de pedra feitos pelos caminhantes. Claro que fizemos um cada um.
-
Nota que não tem nada a ver com nada 2: Houve um momento em que estava sozinho, a ouvir os pássaros e as cigarras e passou uma doninha e depois uma cabra selvagem. De repente, apeteceu-me perguntar a Deus "Não queres mandar mais nada?"
-Nota turística: o barco atracou em Xôra Sfakia. Agora tenho um percurso de 50km serra acima, serra abaixo em dois autocarros e cerca de duas horas.
-O barco parte daqui a 5 minutos. Estou só. Completamente só pela primeira vez desde que chegámos à ilha. A informação é tanta que nem sei por onde começar. Se pelas dores insuportáveis, se pela paisagem assombrosa que me acompanhou ao longo do dia, se pela maravilha que observo agora.
-
Comecemos por aqui. O mar é de um azul indescritível, denso e homogéneo. Acho que parece uma imensa pedra preciosa de tão intenso. À medida que trazemos o olhar para mais perto, vai ficando turquesa e aqui debaixo do barco junto à praia de Agia Roumeli é cristalino e transparente. Esta terra tem meia dúzia de casas, outros tantos carros, dois cafés, uma pensão, um porto e uma praia maravilhosa em forma de baía. É a primeira vez que vejo ao vivo um azul assim. Aqui só se pode vir de barco. Os poucos carros que cá há foram trazidos por este barco e como só aqui há três ruas os carros não são usados para andar aqui mas para levar e trazer produtos para as outras terras. Carregam-nos, levam-nos de barco e depois transportam-se com eles no resto da ilha.
-
A outra forma de cá chegar é vindo a pé. Claro que, para isso, é preciso caminhar ao longo de 18km pelo meio da Serra Branca (Lefka Ôra) atravessando o desfiladeiro de Samaria. Foi o que fiz. Com o Iago. Claro que me esqueci que ele tem 19 anos e eu 42 e uma velha lesão de 26 anos no joelho esquerdo resolveu acordar da sua letargia e fiz 12 dos 18 km com dores horríveis. Não valia a pena queixar-me. Não havia como irem buscar-me! Por outro lado, a paisagem é de tal forma bela e imponente que nunca me ocorreu desistir. De resto, não me serviria de nada! Tomar comprimidos sim, mas não os tinha trazido. O barco partiu agora. O mar é tão azul que até a espuma provocada pelos motores é azulada.
-
Agora vejo Agia Roumeli ao longe. É uma localidadezinha branca, entalada entre uma escarpa com cerca de 500m de altura e o azul intenso do mar.
-Vamos ao dia. Quando o Iago soube que o desfiladeiro de Samaria era transitável, quis vir. Eu ofereci-me para vir com ele pois era uma prova exigente. Ele aceitou mas foi logo informando que ia dormir uma noite em Agia Roumeli para conhecer as pessoas e para voltar no dia seguinte a pé para onde eu vou agora de barco: Xôra Sfakia passando por Lutró. Xôra Sfakia é a localidade mais próxima onde há autocarros. Lutró, tal como Agia Roumeli, não tem acesso rodoviário. É por isso que estou só. Um não veio, decisão prudente e sábia (!), e o outro continua a loucura amanhã com uma caminhada de 24km pela escarpa sobre o mar. Espero que corra bem. Há coisas que temos de fazer na juventude. Esta, ele queria fazê-la. Falar-lhe dos perigos e tentar impedi-lo era inútil.
-
Saímos de casa às 5:30h. Autocarro às 6:30h. e duas horas pela serra acima durante 40km(!) de um caminho estreito e tortuoso onde até um carro passa apertado quanto mais o monstro do autocarro. O motorista parou diversas vezes para se cruzar com outros veículos e para acordar cabras selvagens, chamadas Kri-kri, que vêm dormir para o asfalto e se negam a levantar-se. Aos 2000m de altitude parámos. Não há mais estrada. Depois são 18km a descer até ao mar.
-Tinham-nos avisado do calor, mas como o caminho é muito estreito, entre montanhas e arborizado, o calor não foi um problema. O problema mais sério é o desprendimento de pedras. Estão sempre a cair montanha abaixo. Os tipos, em vez de colocarem protecções, puseram uns sinais a dizer "Grande perigo. Ande depressa." Nós rimo-nos. Se um tipo tiver de levar com um calhau na tola, tanto faz ir depressa como devagar! Ao fim de 1:30h tínhamos feito 6km e essa rapidez inicial foi o meu único erro. Na altura foi com medo de perder o barco mas agora trocava as dores por tê-lo perdido. O chão é muito irregular, feito de rocha solta. Partes do percurso são em leitos de rios que secam no Verão, e o meu joelho esquerdo ressentiu-se. O sétimo quilómetro foi uma tortura. Nesses primeiros 7km houve um rio que se cruzou connosco algumas vezes. Claro que fomos ao banho. A paisagem é verdejante e somos sempre acompanhados pela montanha ao nosso lado e, em muito locais, por cima de nós! É assustadora a forma como a montanha se "dobra" por cima de nós mas muito bonito. Nunca tinha visto nada assim. Entre o quilómetro 7 e o quilómetro 11,5 é a parte mais interessante do percurso, o desfiladeiro propriamente dito, e foi nessa fase que tive mais dores. Mas nem me queixei. Nesses 4,5km vimos a aldeia abandonada de Samaria que dá o nome ao desfiladeiro, andámos pelo rio dentro, tomámos vários banhos gelados, e passámos nos "Portões de Ferro". Não são portões nenhuns, é o nome que deram à parte mais estreita do desfiladeiro. Tem só 3m de largo e cada parede tem mais de 300m de altura. É impressionante. Os últimos 6,5km foram são mais fáceis porque são a direito e o piso é melhor.
-Chegámos a Agia Roumeli ao cabo de 6:15h porque fizemos um intervalo de 15m em Samaria. Não sei se voltarei a fazer este percurso na minha vida, mas gostava. A única coisa que faria diferente, era demorar 8h em vez de 6 e fazer a parte inicial mais devagar. Às vezes pergunto-me porque fazemos estas coisas e acho que é só para testarmos os nossos limites e procurar o desconhecido. Outras vezes, acho que não há razão nenhuma. Temos de o fazer e pronto.
-
Valeu a pena pelo percurso e por ter conhecido Agia Roumeli. Não há ali uma única caixa multibanco e não sei para que é que querem os seis ou sete carros que lá há porque aquilo tem três ruas e o porto. Só se for mesmo para transportarem coisas no barco e levarem para outras zonas da ilha. Mas o mar, meu Deus, o mar é maravilhoso. Deixei a câmara com o Iago, espero que ele faça fotos. Só não sei quanto tempo vou levar a recuperar do joelho mas tenciono colocar gelo logo à noite. Amanhã é dia de dormir muito, ir à praia e atacar novas surpresas gastronómicas. Já chega de esforços físicos. Hahahaha.
------------------------------------
-Nota que não tem nada a ver com nada 1: houve um momento em que chegámos a uma zona a que as pessoas chamam "Santuário de Pedra". Cada pessoa que ali passa faz um pequeno montinho com pedras. Como as pessoas são muitas, toda a encosta está coberta de montinhos de pedra feitos pelos caminhantes. Claro que fizemos um cada um.
-
Nota que não tem nada a ver com nada 2: Houve um momento em que estava sozinho, a ouvir os pássaros e as cigarras e passou uma doninha e depois uma cabra selvagem. De repente, apeteceu-me perguntar a Deus "Não queres mandar mais nada?"
-Nota turística: o barco atracou em Xôra Sfakia. Agora tenho um percurso de 50km serra acima, serra abaixo em dois autocarros e cerca de duas horas.