O Clã do Comboio - Faz o que Quiseres

Faz o que Quiseres.
Não é passageira frequente.
Chegou rosada e anafadinha com as carnes a esticarem-lhe a napa encarnada do casaco. Tem mais de 50. Menos de 60. Umas calças de ganga com o tecido propositadamente arrepanhado numa imitação de feira dessas que estão na modinha. Apresentou-se com o cabelo preso atrás com um gancho de plástico a imitar osso de baleia e trazia um chapéu-de-chuva e três sacos. Um verde pequenino, uma mala de mão que mais parecia um saco de viagem em tons de castanho e lilás e um enorme saco às flores brancas e cor-de-rosa que colocou aos meus pés ocupando todo o espaço entre nós. Íamos de frente um para o outro. Óculos de ver ao perto. Unhas pintadas de encarnado já com pouco encarnado. Tirou do caso pequeno uma toalha turca de cozinha amarela com uns limõezinhos verdes estampados, linhas e uma agulha de croché e começou a bordar uma renda a toda a volta da toalha que lhe dava um ar mais... rendado.

Depois deu-se a conversa. Foi ela que ligou. Poisou a toalha no colo, coçou a cabeça com a agulha de croché que a seguir pôs na boca enquanto falava ao telefone em tom audível em toda a carruagem.
- Sim, és tu?
- (...)
- Entrei há 5 minutos.
- (...)
- Este não é o regional. Chega mais cedo.
- (...)
- Faz o que quiseres, mas está lá à hora.
- (...)
- Olha, faz o que quiseres, mas já que lá vais, traz o detergente p'rá roupa.
- (...)
- Faz o que quiseres, mas não te esqueças das minhas luvas.
- (...)
- Faz o que quiseres, mas prepara o jantar. Estão aí as coisas.
- (...)
- Não. Chego mais cedo. Este é mais rápido.
- (...)
- Não sei.
- (...)
- Faz o que quiseres, mas não te esqueças das minhas luvas.
- (...)
- Não sei. Faz o que quiseres. Desde que estejas lá à hora.

NetWorkedBlogs