O Clã do Comboio - A Rapariga da Voz Doce

A Rapariga da Voz Doce
Já há muito tempo que ando para escrever sobre ela. É quase como se fosse obrigatório porque tem um certo e inegável encanto. Contudo, não tinha muito a dizer. Até que a ouvi falar e a nomeei. Ficará conhecida no Clã do Comboio como a Rapariga da Voz Doce.

Entra e procura invariavelmente o mesmo lugar ao fundo da carruagem, junto à janela e, em vez de encostar-se a ela, oferece-lhe as costas, senta-se de lado com as pernas a fazerem um triângulo e a ocuparem um segundo banco. É assim uma passageira do tipo dois em um, que é como quem diz dois bancos para uma pessoa. E porque faz isto? Básico e compreensível. Porque assim pode colocar os seus óculos escuros à prova de qualquer luz e encostar a cabeça de lado, nas costas do banco. Dorme profundamente até ao Oriente e chega mesmo a resistir às conversas do escritor com os três amigos que querem salvar o mundo. Tem a pele tisnada pelos trópicos e os olhos redondos e grandes emanam simpatia mesmo antes de falar. Mas é quando fala que a rapariga da voz doce encanta. Não interessa o que diz, pode ser só Bom Dia, Até Amanhã ou uma qualquer banalidade acerca da greve na CP. O que interessa é que, quando diz, somos embalados por uma melodia suave ao jeito de bossa nova de quem fala, um tom tranquilo que encanta e apetece ouvir mais. Traz um sotaque brasileiro acopolado e, por isso mesmo, é invocativo de aventuras e exotismos que todos transportamos na memória herdada das vidas que não vivemos e, quando a ouvimos, é como se as tivéssemos vivido. Quando o interregional das 7:18 enche um pouco mais e ela tem de ir direita ocupando um lugar só, nota-se de imediato a contrariedade. É como se o dia começasse sem uma parte fundamental, o sono iniciático.
Um dia destes estendi-lhe um papel com o endereço de Mails para a minha Irmã para que conhecesse o Clã do Comboio. A resposta foi pronta:
- Já conheço.
E naquelas duas breves palavras bailadas, houve ritmo e embalaram-se ideias para além das que lá estavam. Todas as pessoas, quando falam, deviam poder fazê-lo como a rapariga da voz doce. Antecipavam-se mal-entendidos e desarmavam-se mal-intencionados. Ela é a prova de que o que dizemos não vai só no que dizemos, vai também no como dizemos.

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