Motorcycle Chronicles - The Flight

The Flight

Dizem que, quando morremos, deixamos cá tudo, dizem que a morte é o fim de todas as coisas e há também quem diga que há vida para além da morte. Esta história não vai dizer nada disso. Vai dizer, só, que há casos em que a vida e a morte são um contínuo. Uma só e a mesma coisa.

Cartwright desliza a uma velocidade considerável na sua moto de alta potência. Vai engolindo o asfalto da serra propositadamente sem capacete. Agarrada a ele, fazendo no seu tronco toda a força que consegue com o anel dos seus braços, Judy sorve o ar fresco da manhã e cai-lhe uma lágrima porque também não usa capacete. Quando Cartwright chega ao miradouro, no cimo da serra, faz duas reduções com a caixa de velocidades, sai para o terreiro que serve de escapatória, é terra batida, trava, faz meio peão e quando estaca a moto está paralelo ao precipício de uma ravina com mais de 200 metros de altura. Ao lado deles um verde de cortar a respiração e um silêncio cheio de paz e promessas. Ficam uns momentos abraçados sem dizer uma palavra e completamente imóveis contemplando o esplendor da paisagem até que ela diz, Adoro a subida contigo, sabe-me a vida, adoro esta paisagem contigo, sabe-me a vida. Cartwright vira-se, fica sentado na moto de costas para o guiador, de frente para ela e diz-lhe, Adoro a vida contigo. E beijam-se longamente, profundamente, até se sentirem saciados. Depois, Cartwright volta a ligar a moto e descem tranquilamente. Agora já não lhes interessa a adrenalina da subida e do risco. Só o prazer de estarem juntos a deslizar pela consciência da partilha.

Richie Cartwright herdou do pai o gosto por motos de alta velocidade e mulheres generosas de formas. Desde pequeno que sabe conduzi-las, às motos, repará-las, fazer-lhes a manutenção. Passou manhãs e tardes infinitas à procura do trabalhar certinho, perfeito. Hoje, uma moto destas não lhe oferece dificuldades nem surpresas. Conhece-lhes os sons, os ruídos, as manhas e adivinha-lhes os problemas. Conhece-lhes os corpos melhor do que o seu. Fazem parte da sua vida no lazer e no trabalho porque escolheu trabalhar comprando, vendendo, reparando e recuperando motos de alta velocidade. As mais modernas, as mais antigas, as vintage e as peças de museu. Todas com seus segredos, seus encantos e suas maleitas típicas. Todas dignas da sua atenção, da sua dedicação, do seu carinho. É mais do que o seu trabalho, é a sua vida.

Quando Cartwright conheceu Judy, era ainda um jovem, mas soube logo que aquela era a mulher da sua vida. Tinha as ancas largas e roliças e os seios redondos e generosos, a cara pálida e arredondada e os olhos muito azuis e circulares a quererem ver a vida toda num só olhar. Falava muito, dançava com ele e vivia bem com a sua imagem e a ideia que tinha de si. Era expansiva e alegre. Cartwright gostou disto tudo, em particular da generosidade das formas, mas o que mais o cativou foi ter gostado de andar na sua moto. Mostrou-se logo confiante, quis experimentar, Não mostrou medo nem se fez esquisita. Avançou para a moto, avançou para Cartwright e ele recebeu-a nos braços e no assento à velocidade de uma vida.

Passaram-se duas décadas. Cartwright e Judy fizeram milhares de quilómetros juntos, fizeram dois filhos e uma vida partilhada e têm o mesmo e antigo gosto pelo vento frio na face a lembrar-lhes que estão vivos. O seu passeio preferido é ao miradouro no alto da serra. Ficam parados a ver o voo das aves de rapina. Segue sempre uma um pouco mais à frente e outra mais atrás e ligeiramente acima como que vigiando a primeira.

- Gostava de voar assim contigo, Richie.
- Gostava de voar assim contigo, Judy.

Um dia Cartwright chegou a casa, agarrou nos miúdos, beijou-lhes as faces, atirou a mais nova ao ar, beijou longamente Judy e disse, Como foi o teu dia meu amor? Tinhas uns exames... Tinha, Richie, tinha... As lágrimas rolaram-lhe pela face, fez um silêncio longo abraçada a ele e quando recuperou as forças, desabafou, Estou a morrer, meu amor. Não é cancro, tanto que eu temi o cancro, é uma doença degenerativa. Dão-me dois anos, no máximo. Pediram que fosses lá, querem que autorizes comigo uma série de exames, vão aproveitar para estudar e querem dar-te instruções para me acompanhares.

Cartwright e Judy debateram-se com a ideia durante três semanas. Ele foi ao hospital com ela e ouviu os médicos e informou-se e percebeu o caminho de decadência que os esperava. No regresso chorou e fingiu que eram lágrimas provocadas pela deslocação do ar. Decidiu fazer o que fosse preciso. Decidiu, primeiro, decidir o que era preciso. De Judy, só ouviu um pedido, Não me deixes sofrer, meu amor, não deixes que me roubem a dignidade, quero sempre ser livre e altiva como as aves de rapina na serra.

O dia nasceu brilhante e cristalino. A manhã está fresca e gloriosa. Boa para voar. Cartwright acelera pela serra acima, o vento fustiga-lhe a face, faz as curvas com algum risco mas a experiência permite-lhe manter a segurança. Judy agarra-se a ele com mais força ainda do que é habitual, encosta a face às costas dele e fecha os olhos. Cartwright faz uma redução, a máquina ganha força, o som do escape é poderoso, ele desfaz a curva que dá para o terreiro do miradouro, acelera tudo o que a moto tem para dar e ao aproximar-se do precipício da ravina não hesita... voa. No ar, a vida e a morte unem-se. Esta é a continuidade daquela. Um silêncio absoluto envolve a suspensão momentânea do trio alado. Pouco depois, duas aves de rapina, ao longe, ouvem um estrondo e levantam voo. O silêncio retorna e envolve de novo o Universo. As aves planam uma por cima da outra. Cartwright e Judy sorriem-lhes mas desta vez já conhecem a sensação. Do voo.

jpv

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