Na vida das pessoas há sempre assuntos por resolver. Às vezes, para os resolvermos, precisamos de uma longa conversa. Esta é a história do Senhor Nolan e da conversa que teve com a sua amada, M.
Quando se conheceram, o Senhor Nolan usava fato e gravata, era um executivo de uma empresa de comunicações, tinha três filhos, uma mulher prendada com quem praticava sexo sempre missionário, um carro cinzento escuro com quatro metros de comprimento e uma vivenda com dez assoalhadas numa zona proibitiva dos arredores da cidade. A ele, não lhe era vedada a zona, pela simples razão de que podia pagar o luxo. E a vida desenrolava-se entre reuniões, os problemas dos filhos e os orgasmos fugazes e fingidos. Fugazes, os dele...
Um dia, num desses dias em que a mente se questiona a si própria, nesses dias em que o trabalho lhe entorpecera o cérebro, num desses dias em que todos os problemas parecem combinar-se para o atormentar, bateu violentamente com a porta do escritório, disse, Foda-se para isto tudo, e saiu à rua. Caminhou. Sem pensar em nada a não ser no que via. Caminhou para fugir à vertigem de problemas acumulados e soluções por encontrar. Olhou as mulheres, os homens, as crianças, as lojas, os jovens em suas roupas despreocupadas, sentiu o sol, comprou um gelado, e caminhou, caminhou sempre, até que viu...
Vinham numa moto preta com cromados reluzentes. Ele segurava o guiador de braços abertos, tinha uns óculos escuros, um blusão de cabedal e botas como as da tropa. Ela ia atrás, agarrada a ele com um cachecol pelo pescoço em tiras castanhas alternadas com amarelo torrado e as pontas esvoaçantes, os cabelos soltos e um blusão de ganga. Nenhum levava capacete e os dois sorriam ao vento. Para o Senhor Nolan esta fora a visão da liberdade e da libertação, da felicidade e da harmonia. Estava naquela imagem passageira tudo o que lhe faltava. Por vezes, um breve instante na vida de um aprisionado é o suficiente para que pressinta o sabor da liberdade. Por vezes, um episódio insignificante na vida de outra pessoa, pode mudar a nossa. Foi o que aconteceu. Aquela imagem ficou a fazer-lhe comichão na mente, a inquietá-lo. Ponderou imenso. Pensou que estava senil e pensou depois que, se o estivesse, era porque tinha já conquistado esse direito. O Senhor Nolan decidiu mudar. Amadureceu todos os passos e momentos da sua vida. Os do passado e os do futuro.
Divorciou-se. Atravessou essa floresta de complicações e tensões. Meses se passaram. Um ano. E meio! Encontrou novos ritmos de estar consigo, de partilhar a vida com os filhos. Comprou uma casinha pequenina no campo, entalada entre choupos altos. Um carro pequeno e modesto. Entreteve-se na decoração nihilista onde figuravam abundantes velas de cheiro a serpentear a casa. Vivia bem consigo. Inscreveu-se numa escola de condução e tirou a carta de moto. Comprou roupas informais e habituou-se a sorver o tempo só pelo tempo. Um dia foi à Internet e comprou uma moto em segunda mão parecida com a da distante imagem reveladora. Longe no tempo, perto nas intenções. Começou por curtos e breves passeios à volta de casa e, a pouco e pouco, foi conquistando terreno, hábitos, habilidades, mecanismos, até ficar confortável naquela relação homem-máquina.
O Senhor Nolan está diferente. Só vive encarcerado no fato de executivo o tempo indispensável para exercer as suas funções. Todos os dias ao chegar a casa se entrega a si, às suas pequenas prioridades, aos seus pequenos rituais. E, mais extraordinário, quando habita o fato, há uma parte de si que não se deixa aprisionar. O coração do Senhor Nolan rebelou-se, tomou o gosto da liberdade e agora não há amarras nem prisões que o retenham. E os fins-de-semana? Os fins-de-semana são a liberdade em estado puro. Às vezes pára a moto para arrumar o capacete numa das malas laterais e anda uns quilómetros com o vento a fustigar-lhe a face e o cabelo ondulado e ralo. Só porque sim. Um dia parou de frente para o mar e lembrou-se de que algo lhe faltava no sonho de liberdade. Algo estava na imagem reveladora que não viera ainda para a sua. Era M. Lembrar-se-ia ela dele? Claro que sim! Mas o que sentiria? Precisava partilhar esta liberdade com a única mulher que conhecia capaz de a perceber sem a julgar. Precisava de uma longa conversa com M. Decidiu trazê-la para a sua vertigem.
M continuava no mesmo hospital pediátrico como enfermeira. Os mesmos hábitos e rituais. Depois do Senhor Nolan, não quis mais homens na sua vida. Nenhum a preenchia como ele soubera fazê-lo. Nenhum a magoaria tanto como ele o fez só por ter partido. Às vezes punha a música que eles costumavam ouvir juntos quando ele fugia do casamento para os seus braços por uma noite, um dia. E essa memória valia-lhe por uma vida vivida. M era uma mulher sensível e tranquila. Daquelas que sofrem a vida com estoicismo e são capazes de ser felizes com o canto de um pássaro, o ronronar de um gato. Era uma alma que esquecia com facilidade um grande feito mas nunca um pequeno pormenor de humanidade e sensibilidade. Falava com a expressão da face e com o olhar e guardava as palavras como tesouros pelo que dizia só o que tinha para dizer quando isso fosse significativo. Há três anos que M não sabia nada do Senhor Nolan e, por isso, e por todo o passado comum de emoções fortes, o seu coração sobressaltou-se quando abriu o e-mail e viu na caixa de entrada o nome dele em negrito.
"No próximo sábado apanho-te à porta de casa às oito da manhã. Veste-te de forma prática, botas de caminhar ou sapatilhas, calças de ganga e um blusão. Pode ser aquele teu blusão preto. Um lenço ao pescoço é opcional, mas vinha a calhar. Se puderes, nem precisas responder, nem sequer faças perguntas. Se não puderes basta que me respondas «Não posso.» Mais palavras não serão precisas"
É sábado. O Senhor Nolan tem o coração cheio de emoção. Calçou as botas pretas, vestiu a roupa da liberdade, calças de ganga e um blusão de cabedal, colocou o capacete, um outro, suplente, na maleta lateral e dirigiu-se para casa de M. O ar frio fazia-o sentir-se livre, rijo, confiante e o sol entusiasmava-lhe a alma. Nem sequer sabia se ela lá estaria, mas o Senhor Nolan era já um homem feliz.
Quando se aproximou da casa de M, pensou mesmo que ela poderia lá não estar. Não se deteve no pensamento. Era impossível. E era. Há coisas que são como são porque são assim e não de outro modo e tentar explicá-las é rematada loucura. Ela lá estava, no passeio, a figura fina e insegura, o porte gentil e elegante mesmo na ganga. Não o reconheceu. Não o esperava numa moto. Não o esperava com aquele aspeto. Não o esperava. Ele parou junto a ela e só quando tirou o capacete, ela percebeu. Percebeu e sorriu. Ia para falar, mas não o fez. Ele também não. Os dois sabiam conversar sem palavras. Sempre haviam sido bons com o silêncio. O Senhor Nolan estendeu-lhe um capacete, ela sentou-se na moto, ele puxou-lhe os braços e colocou-lhos à volta do seu tronco mostrando-lhe onde se agarrar. Ele, querendo que ela visse o caminho, virou a cabeça para trás e disse:
- Put your head on my shoulder!
Deslizaram durante uma hora e meia, viram a paisagem mudar diversas vezes e conversaram. Sem palavras. Ela encostou-se a ele, sentiu o seu calor, o pulsar do seu peito, agarrou-lhe o tronco e ele sentiu-lhe a força e a vontade de estar ali. Segura a si. E seguiram conversando em silêncio. Chegaram junto do mar onde ele havia estado sozinho. Pararam. Ficaram longos minutos ouvindo o mar em silencio respeitoso, em comunhão. Abraçaram-se, ela encostou a cabeça no ombro dele. Nunca se disse uma palavra. Partiram. Pouco depois ele parou, tirou-lhe o capacete, tirou também o seu e seguiram rolando contra o frio revigorante do vento enquanto o sol alaranjava sobre o oceano. Quando ele decidiu rumar ao interior do território, voltaram a pôr os capacetes. Mais uma hora e meia, sempre conversando, sempre em silêncio. Caíra já a noite cúmplice quando chegaram a casa dela. Não houve palavras nem convites, nem justificações. Ela limitou-se a subir puxando pela mão dele. Fizeram amor puro e intenso toda a noite, em refluxos de entrega e paixão e ausência e presença. Adormeceram dentro um do outro.
No outro dia, quando acordaram, perceberam tudo. Reencontraram todos os motivos, todas as razões e os sentimentos todos. Relembraram o sentido e os sentidos. E foi então que a conversa terminou para que outra pudesse acontecer:
- Bom dia Nolan!
- Bom dia M!
- Amo-te Nolan!
- Amo-te M!
jpv