Motorcycle Chronicles - If You Don't Ride My Bike...

If You Don’t Ride My Bike…

Antes de mais, é preciso conhecer Nathan. Sejamos precisos. Concisos. Breves.

Nathaniel Day, nome de nascença, tem um corpo onde habitam dois sopros. O sopro do quotidiano e sopro da trepidação da sua moto. O primeiro dá-lhe energia para as coisas comuns. Acordar, trabalhar, pagar contas, conhecer algumas pessoas, cumprir obrigações, usar transportes públicos, andar de carro pela cidade, almoçar, jantar, limpar a casa, conhecer uma mulher... O segundo é bem mais simples. É o sopro da libertação, do desvario, é ele que lhe permite ser igual a si próprio e... imagine-se, amar, naquilo a que chamaremos amor verdadeiro ou, mantendo o verbo, verdadeiramente amar!

Nathan é contabilista. Vive entre dossiês e tabelas do Excel. Aplica leis comerciais, faz contas intrincadas de deve e haver e gere uma carteira de clientes a noventa dias... enfim, deveria ser a noventa dias. Usa um fato simples e uma gravata de que se liberta à sexta-feira. Uma bênção, essa ideia da casual friday. Recebe os clientes, mostra-lhes a situação financeira das suas empresas, dá conselhos de gestão, indica-lhes onde têm de investir e como e onde têm de cortar. É, pode dizer-se, um homem de papéis. Nathan é um homem organizado e meticuloso e, por isso mesmo, chegou a uma boa posição na empresa e veio a ganhar bem. Muito bem. Tem sido um solitário por opção. Tem relações pontuais e breves. A única que tem durado é com a Harley que comprou há uns anos e trata com o mesmo desvelo e carinho com que trataria uma namorada. E porquê? Fácil de perceber. É o seu instrumento de libertação. É o seu segredo. O seu escape, a sua verdade, a sua essência. Diríamos que a moto é o seu sofá da vida. É ela que o faz sentir confortável consigo e com o Universo. É o valer a pena de todas as opções e das dificuldades todas. É a fonte de todos os regozijos.

Assim que chega sexta-feira à tarde e Nathan entra em casa, descalça os sapatos, tira o fato, veste-se de gangas e cabedais, calça as botas, enverga a personalidade condizente, sai para rolar e vai viver. Regressará quando a vida quiser. Por vezes, passa todo o fim-de-semana fora. Dorme pela rua, nas montanhas, à beira de um rio, junto ao mar, numa pensão de beira de estrada, num hotel de auto-estrada, num bar, num jardim. Outras vezes volta a casa mas perde-se em voltas e passeios com os amigos durante os dias que correm em libertação. Este homem gosta de si. Conhece os parâmetros da sua vida e sente-se confortável neles. Não precisa de outros. Nunca reparou que era solitário. Até hoje!

No fim-de-semana rolou com os companheiros e notou que, à medida que o tempo vai passando, eles começam a trazer mulheres encavalitadas nas motos, agarradas a eles. São as suas companheiras. Era dos poucos que não tinha pendura. Está tão acostumado consigo mesmo, tem estes rituais e estes ritmos de vida tão interiorizados que ainda se não havia lembrado de uma mulher que fosse mais do que uma relação casual. Fosse uma companheira. Um porto de abrigo. Um compromisso.

Hoje lembrou-se disto tudo e a culpa foi de Crystal!

É uma moça franzina, que usa sempre uma saia azul escura, travada por baixo do joelho, meias grossas de lã e uma camisinha verde-água encimada por um lenço com motivos equestres. Tem os olhos largos e redondos, verdes de intensidade e húmidos de curiosidade. Fala num tom de voz tímido e cuidadoso como se o que dissesse pudesse sempre magoar alguém e ela tentasse perceber isso enquanto falava. Crystal, todos os dias traz os processos novos a Nathaniel Day, todos os dias lhe leva os ofícios para despachar em correio e todos os dias lhe resolve problemas de expediente. Hoje, não fez mais do que o costume, entrou e disse, Bom Dia Dr. Nathaniel, aqui tem os processos que deram entrada ontem, algo para fazer sair?

Ele olhou-a e quase simultaneamente imaginou a sua figura franzina enfiada em gangas e cabedais, com botas e encavalitada numa moto com os braços à volta do seu tronco.

- Quer jantar comigo hoje?

Depois do jantar, um passeio pelo parque com um gelado a adoçar o olhar dos lábios, depois um cinema e a mão na mão, e outro jantar, uma saída com amigos e o fogo do sexo a arder na cama incendiada pelo desejo. Um dia ela disse-lhe, com os olhos assustados pelo impacto que poderia causar a afirmação, Gosto de jogos de submissão…

Ele olhou-a entre o curioso e o surpreendido e respondeu com a naturalidade que conseguiu, Também eu…

E o desejo cresceu e a intimidade das coisas que mais ninguém sabia foi criando laços… Nathan, contudo, optou por uma estratégia arriscada em relação à Harley. Não lhe contar. Esperar por perceber se ela seria, de facto, especial, conhecê-la bem e só então permitir-lhe a entrada nesse universo paralelo de roupas alternativas de ventos velozes a cortar a face, de noites ao relento do prazer. Seria um prémio para ela, a revelação da liberdade.

E continuaram a encontrar-se. Por vezes, à noite liam juntos, viam televisão e de quando vez um deles passava a noite em casa do outro. Começaram a oferecer-se fotos, pulseirinhas, pequenos presentes relacionados com o trabalho. Um caderno, uma caneta, um corta-papel, um marcador de páginas. E a Harley na garagem à espera da consumação…

Crystal vivia encantada com a ideia do seu rapaz de fatinho bege clarinho, camisa branca e uma gravata simples em tom verde-água como a blusa dela. Um dia perguntou a Nathan se gostaria de conhecer os pais dela. Ele foi. Sentiu-se bem recebido e confortável durante todo esse dia e foi esse o sinal de que precisava: apresentar-lhe-ia a Harley e fariam um fim-de-semana perfeito junto ao mar. Dormiriam numa pensãozinha barata e acolhedora que ele conhecia mas passariam grande parte da noite embrulhados em sacos-cama junto ao mar com o fogo crepitando e desenhando sombras no areal noturno.

Combinaram encontrar-se sexta-feira ao final da tarde, depois do trabalho, em casa dele. Nathan saiu mais cedo e foi preparar a Harley com todas as coisas que foi juntando ao longo dessa semana. Pasta dos dentes, repelente, fósforos, uma lanterna, guardanapos, os sacos-cama, uma faca de mato e outros utensílios que sempre fazem jeito nestas ocasiões. Quando Crystal chegou, ele abriu-lhe a porta, beijou-a longamente e disse-lhe, Tenho uma surpresa para ti. Vais conhecer hoje o verdadeiro Nathaniel Day. Não o conheço já? Respondeu ela. Sim conheces, mas falta-te esta última faceta, a última fronteira entre o contabilista e a essência do homem. Levou-a para a garagem, na cave, por uma escada interior, e quando chegaram ao pé da Harley, Nathan disse-lhe com carinho e, ao mesmo tempo, entusiasmo: Não te vou contar quem sou, vais vivê-lo comigo, vou libertar-te de tudo o que possa tolher-te o espírito e o corpo, não há nada mais fantástico do que rolar numa Harley, com o vento no cabelo, a imaginação na mente e a vida toda pela frente. Crystal ficou surpreendida, quase chocada, já estranhara as vestimentas dele quando chegou, pensou num qualquer jogo, mas não imaginara uma faceta tão diferente, não estava a conseguir processar a informação, Nathan quereria que ela fosse com ele naquilo? E aquela coisa podia com os dois? E, no meio deste turbilhão de dúvidas, articulou:

- Nathan, nós não vamos nessa coisa, pois não?

Os céus presentearam o Universo com uma noite clara, o fogo arde alto, aqui ao pé, um grupo de homens e mulheres faz um círculo imperfeito à roda da fogueira, mais ao longe, há vozes entusiasmadas de homens pelas dunas procurando madeira para alimentar o calor, as sombras bailam no areal que o mar castiga continuamente com estrondo e poder, alguns levam garrafas de cerveja à boca, há casais enroscados dentro dos seus sacos-cama, outros enrolam um cigarro demorado e paciente e depois inspiram a primeira passa como se fosse a última das suas vidas, há conversas sobre nada e sobre tudo, sobre as motos, os acessórios, os episódios de viagem, um livro que se leu, um filme que se viu. Entre eles, desenhando um círculo infinito na areia com um pequeno pau que ali estava, Nathan olha o chão, sozinho, e pensa, If you don’t ride my bike…

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