Pequenos Milagres - O Espelho


O Espelho!

Os milagres não se esperam, não se pedem e, se os pedirmos, não acontecem quando os pedimos nem forçosamente quando precisamos deles, caso contrário, não seriam milagres.

Os milagres são um bocadinho como a morte, há até quem diga que a morte pode ser, ela também, um milagre. Acontecem quando querem, a quem querem, como querem, de forma perfeitamente inesperada, mesmo quando se esperam, e não é possível exercer sobre eles qualquer espécie de controlo.

Nessa noite não lhe apetecia sexo, nem mesmo fazer amor. Apetecia-lhe, só, mergulhar no sono e adormecer desta vida por muito tempo. Os problemas eram vastos e sérios e intensos. Nem sequer percebia como o marido poderia pensar naquilo, mas são assim, os homens, umas bestas cobridoras e insensíveis. Já tinha gastado a desculpa do cansaço, das dores de cabeça, da indisposição. Deixou-o suar em cima de si, não se desconcentrou dos problemas. No fim, despejou-se dele, lavou-se e foi dormir. Os problemas acordaram com ela pela manhã. Definitivamente queria atacá-los, queria soltar-se da onda que a parecia afogar em preocupações e arrelias e não sentia por parte do marido o apoio, a força suplementar que ajudaria o seu espírito a resistir e o seu corpo a suportar. Estavam com problemas financeiros que ele parecia querer ignorar e que a afligiam a cada hora, a cada conta por pagar, a cada prazo vencido. Tinha ideias para tentar escapar ao rodopio de dívidas e cartões de crédito a acumular saldo em débito. Não tinha nele, sequer, uma atenção, um ouvido para as ideias dela. Se era verdade que a filha mais nova iluminava a casa com o brilho do seu olhar e o tom límpido da sua risada inocente, era também verdade que o mais velho estava em apuros. Os resultados na escola eram maus, faltava muito, mentia, tentava esconder as cartas. Ela já apanhara diversas a convocá-la para reuniões. Não conseguira ainda ir e sentia-se mal por isso.

O desinteresse do marido por si era confrangedor. Insultuoso. Ela não o confessara a ninguém, mas sabia que era procurada só para sexo sem chama nem paixão. Ele não conversava consigo. Não partilhava uma ideia. Falavam por monossílabos e continuavam juntos sem que nenhum dos dois soubesse porquê. Há meses, já, que suspeitava de uma relação dele com outra mulher. No quotidiano de um casal, na forma como se relacionam, como alteram pequenos hábitos, há coisas que se intuem. Não precisam ser ditas ou reveladas para que se saibam. Sentem-se e pronto. O resto é o universo das provas e das discussões. Só lhe faltam as provas, discussões já as há todos os dias lá em casa.

Recentemente, sentiu-se cansada. Foi ao médico de família. Fez uns exames. Na semana passada, as más notícias bateram à porta. Uma suspeita. Mais exames. Medicação. Uma preocupação mais. Desnecessária. De noite, quando foi lavar-se do marido, viu-se ao espelho e não gostou do que viu. Detestou-se. Quis ser outra. Quis morrer. Seria fácil, morrer. Mas os filhos… os filhos justificam tudo porque não hão de justificar também uma vida inútil?

Outra característica dos milagres é que não se anunciam, nem os dias em que acontecem têm uma marca especial. Pode começar-se um dia com a mais comum das rotinas e acontecer nele um milagre.

Nessa manhã entornou-se leite com chocolate ao pequeno-almoço. Ela exasperou. Depois de os acordar, de os arranjar, de lhes preparar a refeição, ainda tem de limpar o que derramam por descuido. Chegou tarde à escola do miúdo e tarde chegou ao trabalho. Era cedo no dia e ela já estava cansada. Um cansaço que lhe vinha do despertar atribulado, da noite mal dormida, dos dias mal vividos. E, não estando as pessoas de bem consigo mesmas, não estarão bem com o mundo e o mundo regorgitante devolver-lhes-á esse estado de espírito. O trabalho correu mal. Foi descuidada. Recebeu uma repreensão e uma ameaça de despedimento.

À tarde saiu do trabalho sem vontade de voltar a casa, mas foi para lá que se encaminhou. Faltavam-lhe só dez minutos de autocarro e cinquenta de comboio. Passou pelo supermercado. Fez umas compras lá para casa e saiu para a rua com a pasta do trabalho, a sua mala pessoal e três sacos de compras. Um casaco comprido de fazenda e um cachecol de lã ao pescoço. Havia trânsito. O autocarro atrasou-se. Chega à estação, sabe que o comboio está prestes a partir e corre. Não tem nada por que correr, mas corre. Por instinto. Como um hábito. Se perder o comboio não virá mal ao mundo, mas para si será mais uma derrota e um atraso e uma justificação e uma discussão e… corre. Corre quanto pode. Uma ponta do cachecol foge-lhe e começa a ficar pendurada a querer cair e quanto mais ela corre, mais o cachecol quer cair. Sabe que o comboio vai partir. Levanta um dos braços para segurar o cachecol enquanto corre e respira pesadamente. Ao fazer esse gesto, um saco de compras cai-lhe das mãos, as coisas espalham-se pelo chão, ela olha o comboio, quer apanhá-lo, olha as compras no chão e sabe que não pode deixá-las para trás. Volta as costas ao comboio e quando se prepara para se baixar e apanhar as compras dispersas, já as lágrimas lhe correm pela face, impiedosas.

E deu-se!
Aproximou-se um homem alto e largo de costas, com o cabelo liso impecavelmente arranjado, um sobretudo cinzento por cima do fato azul e umas luvas de pele preta nas mãos. Tinha um porte elegante, um aspeto atraente e, sobretudo, tranquilo. Baixou-se, apanhou as compras espalhadas pelo chão e colocou-as no saco. Levantou-se e abriu um sorriso que iluminou o fim de tarde já muito escuro.

         - Aqui tem. Não precisa chorar por tão pouco.
         - Não é por isso…
         - Eu sei.
         - Sabe?
         - Sim. Há dias, há momentos na vida de uma pessoa em que tudo parece correr mal… em que parece que só um milagre nos salvaria. E sabe que mais? Quando se bate tão fundo, normalmente os milagres acontecem mesmo.
         - Acha?
         - Tenho a certeza. Olhe, deite tudo para trás das costas. Uma senhora elegante e bonita, como é o seu caso, não merece que a façam chorar. Merece todas as coisas boas da vida.

E, sem dar-lhe tempo de reagir, puxou-a para si e abraçou-a longamente. Nesse momento, mais um saco lhe caiu da mão e as compras espalharam-se pelo chão. Largaram-se a rir ao mesmo tempo e baixaram-se os dois apanhando as compras.

         - Obrigada. Muito obrigada. As suas palavras foram poucas, mas muito importantes.
         - Não se preocupe com nada, vai ter uma vida fantástica.

Então, o mundo mudou de atitude em relação a ela, tudo quis resolver-se. Talvez por isso, surgiu um aviso pelos altifalantes da estação.

         - Por razões de ordem técnica, a partida do comboio 732, marcada para as 19:41, encontra-se atrasada. Estima-se a saída da composição dentro de vinte minutos.
         - Veja, parece que não perdi o meu comboio!
         - A senhora não perdeu o comboio nem a vida!

Beijou-a na testa e afastou-se.

Ela viu-o ir como quem contempla um milagre e depois dirigiu-se para o comboio. Quando caminhava ao lado das carruagens, olhou as janelas e contemplou o seu reflexo. Nesse momento, gostou do que viu.

jpv

NetWorkedBlogs