Motorcycle Chronicles - Life and Death

Life and Death

Busted John sai de casa vestido com o seu fato negro impermeável, anti-frio, anti-vento, anti-chuva. A porta número 17 da casinha em que habita fecha-se nas suas costas. No pequeno jardim à frente da casa repousa a moto. Companheira. Com ela já viveu aventuras inimagináveis. Tudo o que a lei permite e proíbe. Monta-a. As botas negras de pele assentam nos estribos, passa o portão para a rua ronronando força e, assim que chega à estrada, mergulha na cidade a alta velocidade. Hoje, vai desafiar a morte! Percorre a mais longa avenida da cidade a 150 km/hora, passa os oito semáforos que a pontuam sem sequer olhar para eles. Desvia-se da traseira de um camião que, num deles, circula perpendicular ao seu sentido. Aproxima-se de uma rotunda, reduz duas mudanças, a máquina agarra ao chão com força, fecha os olhos e entra na rotunda sob um coro de buzinas reclamantes, sai do lado oposto ao que entrou e investe direito à estrada nacional.

Na cidade, a morte não quis nada com ele. Circula agora numa estrada com dois sentidos. O limite máximo de velocidade são 90 km/hora. Mantém-se nos 150. Tem dois carros à sua frente, inicia a ultrapassagem, percebe que tem de percorrer 200 metros, quando está na faixa da esquerda fecha os olhos e só os abre quando calcula que os passou. E passou. Retoma a sua faixa. O risco foi grande, mas nada parecido com o que está capaz de assumir. Agora tem uma carrinha de caixa aberta à sua frente, em sentido contrário vem um ligeiro, tomba para a esquerda, avança na direção do ligeiro, ele faz-lhe sinais de luzes, Busted John espera mais um pouco e quando está a 20 metros dele, já com a carrinha de caixa aberta ultrapassada, tomba para a direita. Nada. A morte não quer nada com ele. É covarde. Só ataca criancinhas de seis anos. Finalmente encontra um desafio à altura do que procura. Tem um camião de longo curso no seu sentido, à sua frente. Outro se aproxima em sentido contrário. Se iniciasse agora a ultrapassagem, teria muito tempo, mas isso seria tratar mal a morte, ser injusto com ela, não lhe dar uma verdadeira oportunidade. Espera. O camião à sua frente vai cuspindo fumo. O outro aproxima-se célere, está a 100 metros. Busted John fecha os olhos e inicia a ultrapassagem, a vida toda passa-lhe pela vista em imagens e uma delas é mais forte que todas as outras. O seu filho Mark, de seis anos, numa cama de hospital com leucemia. A moto engole estrada a alta velocidade, o condutor do camião em sentido contrário faz sinais de luzes, segura o volante com força e trava. Busted John está a escassos 10 metros dele, mal ultrapassou o que ia à sua frente, abre os olhos, vê o monstro metálico, um flash de milésimos de segundo passa-lhe pela cabeça, é Mark jogando à bola no parque antes de ter adoecido, e essa imagem traz-lhe um instinto de esperança, tomba, súbito, para a direita, passa entre os dois camiões sob buzinas fortes e impropérios gritados. Sai da nacional, entra na auto-estrada, rola ao máximo que a máquina pode dar. Vai a 240 km/hora. O tracejado descontínuo que separa as faixas fica-lhe debaixo da roda dianteira a uma velocidade estonteante. Segue sempre pelo meio, entre as faixas, os carros que circulam pela direita e os que circulam pela esquerda são surpreendidos pelo ronco fundo da moto. Um deles estava a iniciar uma ultrapassagem, logo, a mudar-se para a faixa da esquerda, Busted John tomba para a direita e passa-os todos usando a berma larga da auto-estrada. Retoma a nacional, sobe a serra, chega ao "Alto da Águia" onde tantas vezes veio com a mulher nesta mesma moto só para ver o vale. Uma vez lá em cima, estaca junto ao precipício e fica a olhar a pequenez humana. É tudo minúsculo. As casas, as pessoas, as alegrias delas, as infelicidades, as conquistas, os conflitos e as mesquinhices. É tudo do tamanho de formigas. Vê outra vez a vida em imagens. Agora num desfiar mais lento. Vê a mulher antes da ecografia, antes das suspeitas, antes das biopsias, antes da quimioterapia, antes do calvário da perda de dignidade. Vê tudo. Vê a sua Mary e o seu Mark vítimas da mesma fatalidade e vê a sua cobardia. A sua vontade de partir antes deles porque não concebe a ideia de partir depois.

Dá meia volta com a moto. Foi tomar balanço. Está agora a escassos 50 metros do precipício, de frente para ele. É uma ravina com mais de 300 metros de altura. Será o voo perfeito. Faz duas acelerações para ouvir o ronco da moto, avança direito ao precipício, está determinado. A morte não veio buscá-lo, entregar-se-á nos seus braços. As imagens da vida percorrem-lhe a mente, despede-se de tudo, de todos e quando está a chegar ao momento do voo, a última de todas as imagens crava-se-lhe no olhar da memória como se fosse hoje, mas é uma cena com seis anos. É uma senhora jovem e feliz numa cama de hospital com um bebé deitado entre o seu braço e o seu peito. A jovem sorri. O bebé dorme em paz. É o dia em que Mark nasceu. 

À beira da morte, quando esta esfregava já as mãos de contente por mais uma conquista, a vida que há em Busted John faz uma última tentativa. Ele trava a fundo, tomba o corpo e a máquina para a esquerda, faz um peão e fica de costas para a ravina, de costas para a morte, com o pneu de trás meio em terra, meio no ar.

A moto entra vagarosa no pequeno jardim de frente para o número 17. A porta abre-se. Uma criança pálida e frágil e uma mulher frágil e pálida correm-lhe para os braços:
- Papá!
- Meu amor, onde foste?
- Fui travar uma batalha.
- E ganhaste?
- Ganhámos!
- Ainda bem, meu querido, precisamos tanto de ti. E agora que ganhaste essa batalha, que vamos fazer?
- Vamos lutar até ganhar todas as outras que nos esperam. Sabes, Mary, antes da morte, mesmo antes da morte, há sempre uma porta para a vida!

jpv
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Dedicado a todos os seres humanos que abraçam a vida.
Dedicado à D.

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