Elegia para um Concerto - III


Capítulo III - Alquimia
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Alquimia, s. f. Química da Idade Média. Ciência oculta tendente a descobrir o elixir da vida e a pedra filosofal.

Escolheram o momento adequado para dizer-me. Acontece que nenhum momento é adequado para se dizer a uma pessoa que outra pessoa morreu. Sobretudo se eram amigos. Sobretudo se algo poderoso os ligava. E ligava. Era um concerto. A vida nunca mais foi a mesma. Porque não fica a mesma, a vida de uma pessoa quando outra lhe é subtraída. Porque nunca mais ouviria aquele concerto da mesma maneira. Dali em diante, quando o ouvia, não era só pelo gosto de o ouvir, era também, e sempre, como quem presta uma homenagem. Vou contar-vos a minha história com o S. e o concerto que nos uniu para sempre.

Por razões que as leis do comércio ditam, gravaram o concerto. Ainda bem. Os jornais já vinham falando do lançamento há algum tempo. Sobretudo o "Sete" porque era da especialidade. Na altura, era possível produzir e vender um jornal que fosse exclusivamente sobre arte. Finalmente, em 1 de março de 1984, o álbum com a gravação do concerto foi lançado. Em dois suportes. Vinil e cassete. Não comprei. Nem sequer soube do lançamento. Lembro-me de ver um poster com o Mark Knopfler a tocar guitarra com um casaco encarnado e uma tira branca de pano na cabeça, mas não associei à música. Não podia. Não a conhecia. Mas este concerto tinha de vir ter comigo. Tinha de fazer o seu caminho até encontrar-me. Acontece que a alquimia não se opera sozinha. Precisa de um alquimista. E o meu alquimista foi o S.

Os dias de escola tinham acabado. Pela frente havia um longo Verão de trabalho e aventuras. As aventuras lá mais para o pico da estação. Para já, o trabalho. Com o meu pai, com a minha mãe, com a minha mana. De manhã à noite, mercearias, charcutarias, frutas, clientes, balança, máquina de fiambre, embrulhos, contas, cumprimentos e de frente, do outro lado de uma rua estreita onde não passavam carros, o S. vendia material elétrico. Tomadas, interruptores, disjuntores e quejandos. Era um pouco mais velho do que eu. Rondava os 20, ele. Nos momentos de menor movimento, vínhamos os dois à porta, encostávamo-nos à ombreira e conversávamos. Sobre raparigas, futebol, episódios do trabalho e, claro, música. A música era a paixão do S. Ele tocava. Foi num desses momentos, lembro-me que era segunda-feira, que me disse, Tenho aqui uma coisa que vais gostar. Ah sim o que é? Um concerto, é o último álbum dos
Dire Straits, conheces? Não, isso é o quê? É rock, o melhor de sempre, dizem que o guitarrista é o melhor do mundo, olha. E mostrou-me duas cassetes, parte 1 e parte 2, com o Alchemy. Quanto queres por elas? Um conto e quinhentos. 'Tás maluco, isso é muito. Faço-te um desconto, mil paus. Não tenho dinheiro pá. Pagas aos bocados. E posso ouvir um bocado antes de comprar? Bem sei eu se gosto disso. Toma, leva-as contigo, só mas pagas se gostares, se não gostares dás-mas de volta.

No outro dia dei-lhe os mil escudos. Aquilo não era coisa que se comprasse a prestações. Demasiado bom. Demasiado precioso. Comecei a ouvir o concerto pelas dez da noite sentado na alcatifa da sala com um gravador que tinha, daqueles com uma portinha que levantava para se colocar a cassete e uma fileira de teclas à frente. Play, Stop, Pause, Fwd, Rwd, 
Rec. Esta última era encarnada. Depois mudei-me para o quarto e fiquei a ouvir os épicos solos do Mark, as histórias evocativas, as baladas, as músicas ritmadas. O que me entusiasmava era que cada música parecia contar uma história na forma como a sequência das notas estava ordenada. Assim como se a guitarra falasse. Só desliguei a música à hora do pequeno-almoço. Aquilo não era música. Aquilo era tudo o que eu alguma vez tinha conseguido sentir, todas as minhas emoções e sentimentos concentrados e condensados em duas cassetes a despertarem em turbilhão, música a música, nota a nota. Alquimia pura. Um milagre.

Gostaste? Toma o dinheiro. Pagas quando puderes, já te disse. Toma, quero pagá-las agora, esta noite não dormi. Eu sei, quando as ouvi pela primeira vez também fiquei assim. Não me saem da cabeça, não sei de qual é que gosto mais, acho que há uma para cada estado de espírito.


O
Alchemy tem uma identidade própria. É quase como se houvesse duas bandas chamadas Dire Straits. A que tocou o Alchemy em 22 e 23 de Julho 1983 e a que tocou as outras coisas todas. A que tocou as outras coisas todas é uma banda interessante, mas comum. A que tocou o Alchemy fez magia, encheu de emoção os corações de milhões de pessoas, preencheu-lhes as almas com imaginários fabulosos. As notas são imaculadamente tocadas nos momentos exatos, as pausas são perfeitas, as intervenções do vocalista na sua interação com o público são apropriadas e dão intensidade e familiaridade ao concerto, o público está a ouvir música rock num silêncio absoluto, embevecido e respeitoso e quando se manifesta isso vem na sequência da emoção acumulada e fá-lo de forma harmoniosa. Sim, por incrível que pareça, a gritaria dos milhares de espetadores que foram ao HammerSmith Odeon naquela noite é harmoniosa.

O concerto tem quatro momentos sublimes. São trechos longos que evocam vidas passadas, imaginários históricos, têm ritmos alternados que vão do entusiasmo absoluto à nostalgia melancólica e têm solos memoráveis, como se não fossem ter fim, como se aquilo que queríamos ouvir a seguir saísse por magia da guitarra de Knopfler. Por vezes quase param, mas, a pouco e pouco, promessa a promessa, retomam os ritmos trepidantes e fazem-nos acreditar de novo na Humanidade. São trechos épicos. Ouvir estes temas, cada um deles, é como nascer, viver uma vida, morrer e ressuscitar. O ciclo completo da vida mais um milagre. Falo de Once upon a time in the West, Telegraph Road, The Tunnel of Love e o imprescindível Sultans of swing.

Há, ainda, três momentos de inconfundível, ritmado e trepidante rock. São músicas de um folgo só. Avassaladoras na forma como nos exultam o espírito. Nesses momentos, é como se todo o Universo girasse à volta daquela batida, daquela trepidância arrebatadora. Solid Rock, Expresso  love e o inesquecível Two young lovers.

E há por fim um outro conjunto de momentos. As reflexões. São baladas melodiosas que nos empurram para dentro de nós próprios e nos revelam os nossos mistérios interiores. São histórias de amor e nostalgia. São hinos. E uma delas, a que fecha o concerto, é uma despedida. Um lento e suave adeus de quem parte e regressa às suas origens. Romeo and Juliet, Private investigations, Love over gold e a suprema Going Home.

Durante a semana em que conheci este concerto, conversei diversas vezes com o S. sobre as canções e o seu significado. Sobre qual gostaríamos mais. Gostávamos de todas. Em separado não fazem grande sentido. O ideal é ouvir o Alchemy de uma vez, como se fosse uma história e depois... ouvi-lo de novo. O significado do Alchemy para nós era a reinvenção do Homem pela música, uma história abreviada da nossa existência, uma visita guiada pelas nossas aspirações, pelos nossos sucessos e pelas nossas desilusões. Às vezes púnhamo-nos a trautear as letras ou os solos e a fingir que tocávamos guitarra. Braço esquerdo estendido, braço direito encolhido a dedilhar junto à barriga. O S. estendia o braço direito e encolhia o esquerdo. Era canhoto.

Aquelas cassetes acompanharam-me durante anos, até as fitas se partirem de tanto tocar. Depois adquiri o vinil, depois os CDs, hoje em dia tenho o Alchemy em diversos suportes e, claro, espalhado por todo o lado. Aparelhagem, computador, carro e telemóvel. Para quando as coisas correm muito mal, muito bem ou assim-assim. Consigo trazê-lo no carro durante dois ou três meses e ouvir pedaços sempre que conduzo nem que sejam só dez minutos. É como se a vida ficasse mais fácil, mais fluida, como se valesse mais a pena vivê-la.

Quando chegámos a sexta-feira, percebemos que tinha sido uma semana igual às outras todas e, contudo, especial. Igual às outras todas porque repleta dos mesmos rituais, dos mesmos gestos. Especial porque conversámos sobre a música das nossas vidas, porque numa só semana aprendemos sentimentos e emoções extraordinários a ouvir Knopfler e os seus amigos no HammerSmith Odeon. E, claro, criámos uma cumplicidade nascida no gosto pelos acordes e ampliada pela perceção do sentido múltiplo das composições. Eu estava feliz por ter encontrado a felicidade. Ainda bem que comprara as cassetes. Era como se uma parte de mim tivesse andado perdida e, pela música, se reunisse na minha existência. O S. estava feliz por me ter mostrado a felicidade, por ter encontrado quem admirasse a música com ele. Ao final da tarde de sexta-feira disse-me, Amanhã vou a Lisboa buscar umas coisas muito boas, há uma que vais gostar. O que é? Logo vês.

Na segunda-feira de manhã, quando cheguei à loja, não o vi. Pela hora do almoço, a minha mãe disse-me, Sabes, filho, às vezes a vida traz-nos coisas boas e outras vezes leva-nos as coisas boas que nos trouxe. O que é que foi? Não há como dizê-lo de outra forma, o S. faleceu. O quê? O S. o quê? Como? Parece que foi a Lisboa no sábado e no regresso teve um acidente ali no cruzamento de Leiria, uma vida não se ceifa assim, mas a vida não está nas nossas mãos. Sim, eu sei.

Não fui ao funeral. Não soube sequer quando foi. O S. para mim não morreu. Vive em cada acorde da mágica noite de Londres em 22 de Julho de 1983. E vive em cada emoção que me aflora a alma e o peito quando oiço a guitarra de Knopfler. Vive porque está comigo, o meu alquimista, o jovem que me revelou a magia da música. A música que, desde então, tem sido a banda sonora da minha vida.

"HAVE A SAFE JOURNEY HOME"
(Mark Knopfler ending Alchemy)
jpv


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