O Clã do Comboio - Polifonia Móvel



Polifonia Móvel


Os Telemóveis são uma praga. Uma infeção social. Uma marca da nossa ignorância, da nossa futilidade, um hino ao desnecessário. Representam tudo aquilo de que a Humanidade deveria ter-se desviado e, infelizmente, cultivou.
Ora, em matéria de telemóveis, o pior são os toques. Mesmo pressupondo o absurdo dos telemóveis existirem, deveria ser obrigatório que fossem silenciosos. O regional, ultimamente, parece uma orquestra de toques polifónicos. Toda a gente tem um toque diferente e as pessoas parecem competir para ver quem tem o toque mais absurdo, o mais barulhento e incomodativo. Os seres humanos são burros! Queixam-se da bomba atómica, da poluição dos mares e dos rios, de mil e um aspetos ambientais e esquecem esta gigantesca explosão sonora que, à escala mundial, todos os dias nos agride os ouvidos e o cérebro. 

Todos os dias, religiosamente às 8:45, há um rancho folclórico que se esganiça na mala de uma mulher adormecida. Todos os dias, religiosamente a qualquer hora, e durante a viagem toda, há um tipo que recebe uns dez ou quinze e-mails no seu telemóvel e o problema é que o toque dele é a voz metálica e aguda de uma mulher dizendo como um robô, alto e bom som, You've got mail! Apetece-me apertar-lhe o pescoço, mas ela não tem pescoço. É só um pedaço de plástico fabricado na Tailândia. E há aquele tipo de meia-idade cujo toque é a imitação sonorosa de um telefone antigo. Aquilo toca na outra ponta da carruagem e todos ficamos a saber que a senhora do senhor quer saber se ele apanhou o comboio. A situação mais curiosa que presenciei foi a da velhinha. A velhinha era baixinha e pequenina e enrugadinha e sentou-se e adormeceu, coitadinha. Estávamos os dois numa fila de três bancos e entre nós jazia a mala dela. A carruagem ia cheia e em razoável silêncio. Momentos depois, ecoa por todo o Universo uma brutal, envolvente, cheia de baterias e diversos palavrões em inglês, música de heavy metal. O som era alto, mas um pouco abafado. A velhinha abriu os olhos e a mala e tirou de lá de dentro o telemóvel donde emanava toda aquela gritaria. E, nesse preciso momento, o som perdeu o abafado, ficou só ensurdecedor. Então, ela carregou na tecla de atender e disse com uma voz pífia, muito fraquinha, assim como quem não quer incomodar:
- 'Tá lá?

E tocam, e tocam, e tocam... ele é os grilos que grilam, os galos que cantam, os gatos que miam, os Xutos e Pontapés, o Tony Carreira, a Rhianna, a Adèle, a Dulce Pontes, o Quim Barreiros, o Beethoven, uma voz a dizer, Atende o telefone, ó pá, os bips discretos, os bips não discretos, as mais diversas combinações de sons perfeitamente indefinidos. Há dias aconteceu algo interessante, sobretudo tendo em conta os dias que vivemos. Um tipo tinha um telefone com um altifalante tão bom que se ouvia nitidamente o que o interlocutor dele estava a dizer do outro lado. Começou ele:
- Tenho uma coisa para ti...
- O que é?
- Eu depois digo.
- Vá lá, pá, diz lá, pá...
- É trabalho.
- Ora porra!
E há quem fale baixinho, mesmo baixinho. E há quem fale alto, mesmo alto. E há quem queira falar baixinho, julgue que vai a falar baixinho, tenha os tiques de quem vai a falar baixinho, mas cuja voz atravessa cristalinamente a carruagem com todos os pormenores do jantar, da educação dos filhos, da vida amorosa, do divórcio, do trabalho.

Os telemóveis, sobretudo os toques, estão a invadir o nosso quotidiano e o nosso cérebro e nós agimos como se houvesse regras, e há, mas o facto é que está instalada a selva polifónica. A infeção sonora. O vírus móvel. E não há nada a fazer. A propósito, eu tenho telemóvel. Bip pseudo-discreto. Falo alto.

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