Num Voo Nunca Acontece Nada - O Beijo



Num Voo Nunca Acontece Nada
Fazemos o check-in, tiramos o relógio, o cinto e os anéis, passamos no detetor de metais, percorremos a loja dos chocolates, a dos perfumes e a das revistas, dirigimo-nos para a porta de embarque, esperamos, entramos no avião, arrepiamo-nos no momento da subida, comemos uma refeição a bordo, lemos uma revista, vamos à casa-de-banho, arrepiamo-nos com a descida, saímos à rua e... fazemos tudo de novo. O que a seguir se conta são histórias entre o primeiro e o último momento da sequência que acabámos de registar.

O Beijo

É imprevisível, a vida. E, por sorte, são imprevisíveis os comportamentos. Não é que as surpresas sejam sempre boas. É que não poderíamos viver sem elas. As boas. E as más. Esta história é simples. Conta-se de um fôlego. Os motivos por trás dela, ou pela frente, ou pelo meio, ou dentro das pessoas dela, esses, é que dão que pensar.

Era um casal. Dois carrinhos de bebé. Uma criança tinha um ano. A outra tinha dois. Depois do check-in, quando se deu o embarque, tiveram direito a ser os primeiros por via dessa especial e preciosíssima carga. À entrada do avião, um rapaz simpático num colete fluorescente ficou com os carros. As duas crianças ficaram cada uma num banco. A de dois anos junto à janela. A outra no assento do meio com uma cadeirinha especial. Na ponta, o pai. A mãe com os seios inchados e generosos de amamentar o mais novo, ficou no primeiro lugar da mesma fila mas depois do corredor. Descansaria na primeira parte do voo e depois trocavam de lugar e assumia ela o comando da criançada. Ao lado dela, um anónimo e a seguir a ele outro anónimo. 

Ela percebeu com o decorrer do tempo que o anónimo junto a si reparava insistentemente nos seus seios. Era bonito, o rapaz. Novo. Barba rala, loira. Olhos azuis. Cabelo curto. Fato beige e um ar sorridente. Cruzaram o olhar duas ou três vezes e houve, nesses momentos, um subtil sentido de oportunidade. Há três anos que vivia soterrada em gravidezes e crianças e afazeres relacionados. A vida era demasiado previsível. Demasiado repetitiva. O jovem estava em trabalho e tinha tudo consigo, a vantagem de responder só perante si mesmo. Claro que reparou nos seios dela. Claro que os achou atraentes. Claro que relacionou isso com a amamentação. Mas não se importou. Aquele decote merecia um olhar demorado e generoso. E olhou. Sensivelmente a meio da viagem, um pouco antes da refeição que ia ser servida a bordo e acabara de ser anunciada, o marido informou que ia à casa-de-banho. Depois iria ela e trocavam de lugar. De posto. Assim que ele virou costas, ela sentiu de novo o olhar do rapaz anónimo no seu peito. Pensou repreendê-lo. Conteve-se. Pensou vestir o casaco de malha e tapar a provocativa abertura. Não quis conter-se. De repente, todo o stress dos últimos anos quis explodir, a loucura aflorou-lhe a mente como uma descarga emocional, como quem tenta sorver em segundos a vida desperdiçada em anos. Virou-se para ele. Fez um olhar atrevido. Ele não se amedrontou. Fez um sorriso malandro. E, num repente, ela colocou-lhe uma mão na nuca, puxou-o para si e beijou-o avidamente na boca como quem quisesse sorver-lhe a língua e absorver-lhe a vida prometida no sorriso malandro. Ele beijou-a de volta. E, enquanto se beijavam, ela agarrou-lhe numa mão e colocou-lha sobre os seios que ele acariciou abundantemente por cima da roupa. Quando terminaram, compuseram-se nos assentos como se não se conhecessem. E não conheciam. 

O marido voltou. Trocaram de lugares como combinado. Ela tratou das crianças. Nunca mais olhou para o anónimo que nunca mais lhe olhou para os seios. Aterraram. Foram às suas vidas e não voltaram a cruzar-se.

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