O Ofício da Memória - 2 - Bolacha Maria



Bolacha Maria


Lembro-me como se tivesse sido ontem, uma memória fresca e recente. E intensa. Sobretudo intensa. Além disso, tudo aquilo foi pueril, diria até, inocente. Faz este ano vinte e oito anos que aconteceu esse pouco que na altura foi tudo, que me marcou para sempre pela simplicidade dos gestos, pela sensibilidade com que as emoções nos perpassaram o coração e a alma.

Vou contar-vos a história do dia em que fui engatado e da fantástica mulher que me engatou com uma Bolacha Maria.

Não gosto muito da palavra engatar. Contudo, não me ocorre melhor. Conquistar, não sendo mentira, é demasiado cavaleiresco. Faz lembrar novelas de cavalaria e Bernardim Ribeiro. Namorar, não sendo mentira, é mais alongado no tempo e eu quero concentrar-me naquela manhã. Por outro lado, engatar é uma expressão, quer gostemos quer não, de conhecimento generalizado. Toda a gente percebe, de imediato, do que se trata.

Ela namorava com o A e eu andava a tentar esquecer esse complexo pântano de sentimentos em que estivera mergulhado: a ML. O que quer que seja que houvesse entre eles, estava a desvanecer-se por desinteresse mútuo. Nunca explorámos isso porque decidimos não olhar para trás, não fazer perguntas, não dar respostas, mas acho que ela estava desiludida. Decidimos não decidir nada. Somente usufruir da companhia um do outro. Terá sido, talvez, a abordagem menos elaborada e menos refletida que alguma vez fiz de um relacionamento a dois e nem por isso deixou de ser uma das mais bem sucedidas. Foi um enamoramento espontâneo e desinteressado, uma espécie de Carpe Diem do amor. No que desse, daria. No que não desse, não lhe tinha sido exigido. 

Era uma manhã fresca de primavera, mas soalheira, e o dia prometia aquecer. Naquela altura tínhamos descoberto o fantástico poder da conversa, o gosto por uma troca de ideias entusiasmante e estimulante e, por isso, o que mais gostávamos das aulas era o intervalo. Deixáramos de correr atrás da bola, de jogar às escondidas ou qualquer atividade fisicamente mais exigente. Fazíamos círculos de oito, dez, doze colegas, raspávamos o chão com a ponta das sapatilhas desenhando outros círculos, os de acompanhar as conversas. Olhávamos nos olhos uns dos outros, falávamos, perguntávamos, respondíamos, ríamos.

E a vida era interessante, assim debatida e partilhada. Futebol, música, moda, livros, teatro, arte, aulas, professores, caráter, comportamentos e, claro, os relacionamentos: o tópico dos tópicos. Sem tabus, rapazes e raparigas numa roda de aprender uns com os outros o pouco que uns e outros tinham para ensinar.

Lembro-me muito bem onde estava, no átrio, junto à imensa frente envidraçada da escola. Tinha os braços estendidos ao longo do corpo e as mãos vazias. Muitas vezes na vida tive as mãos vazias. Não era o meu círculo mais frequente, mas conhecia-os todos. Até a ela. De vista. Sempre lhe reconhecera a beleza nas formas e o brilho no olhar a contaminar o sorriso, mas, como disse, ela tinha namorado e eu namorada e nessas alturas o mundo fecha-se à nossa frente. Como andava procurando afastar-me da ML, juntei-me a esta roda de conversadores e abandonei aquela onde tinha lugar cativo. Ela não estava lá. Chegou momentos depois. Lembro-me de ter pensado que era diferente ao perto. Mais bonita, mais presente, mais interessante.

Com naturalidade, aproximou-se, cumprimentou a malta, abriu um sorriso largo e disse como se soubesse há muito que eu estava ali, como se tivesse estado à espera que eu aportasse naquele cais de conversa:

- Olá! Queres uma bolacha?
E estendeu-me uma Bolacha Maria.


- Está bem, pode ser.

Sempre gostei da expressão pode ser. É que, sendo afirmativa e de anuência, não é intrusiva nem excessiva. Ela estendeu-me a bolacha para a mão esquerda, a mais distante dela, que estava à minha direita e com a sua mão esquerda segurou a minha mão vazia. Preencheu-a de calor, energia e humanidade. E pronto. Ficámos de mãos dadas. Acho que éramos namorados. Há quem troque alianças, Baltasar e Blimunda partilharam uma malga e uma colher, nós partilhámos uma Bolacha Maria. Algum tempo depois, alguém arriscou uma pergunta que não perguntava o que as palavras diziam mas o que os gestos implicavam:
- Vocês estão de mãos dadas?
Ela nem me deixou pensar, quanto mais responder. Adiantou-se. Respondeu e fechou o assunto:
- Sim. Somos namorados. 

E pronto. Foi assim que fiquei a saber que namorava com a MJ!




Nota do Autor:
Bolacha Maria é o primeiro de três capítulos de "O Ofício da Memória - 2 - "

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