O Clã do Comboio - O Meu Epílogo


O Meu Epílogo

Podia ser uma viagem como outra qualquer. Uma companheira lendo uma revista. Outra dormitando. Muitos lugares vazios por via das férias. o Sol banhando a carruagem que desliza quase silenciosa. A mesma voz feminina anunciando a próxima paragem. Nada nem ninguém de extraordinário a assinalar. A não ser que é a minha última ida.

Transporto comigo a memória dos dias bem sucedidos e dos dias mal sucedidos. Transporto comigo as alegrias e as tristezas. Transporto comigo as experiências e as amizades construídas. Transporto comigo os dias em que exultei e aqueles em que adormeci, as peripécias de viagem, as personagens, o espontâneo, o inusitado e o comum. Transporto comigo um respeito imenso por todos aqueles que se deslocam de longe para trabalhar. Pessoas que somam ao seu horário de trabalho duas, três, quatro, cinco e seis horas de viagem por dia! Pessoas para quem as despesas com transportes são uma significativa fatia do seu orçamento familiar. Incorporei as minhas cinco horas diárias de deslocação e os mais de quatrocentos euros mensais em transportes na minha vida e fui à aventura de peito aberto. Saí mais forte. O engraçado, para mim, é que, mesmo sendo a viagem de comboio uma rotina quotidiana, cada vez que o apanhei teve uma marca. A marca da esperança num trajeto que se inicia, a marca da expectabilidade do que poderia acontecer em cada viagem.

Esta viagem, hoje, é o meu epílogo. Um ciclo de vida que se fecha. Um trajeto solitário e instrospetivo. Ainda bem. Tenho a consciência muito tranquila. A sensação do dever cumprido e a clara noção de que muita coisa falta fazer ainda.

E lembro, à distância de quase dois anos, tudo o que se disse sobre mim quando aceitei este trabalho. Os jornais e os blogues criticando a minha pessoa e as minhas opções como se soubessem quem eu era, como se me conhecessem, como se algo houvesse que validasse juízos de valor errados e precipitados. Palavras de injustiça fundeadas na ignorância. Nunca fui mais do que um homem com sonhos. Nada, rigorosamente nada, me moveu a não ser a vontade de participar, de contribuir. De forma absolutamente honesta e dedicada. E não trago arrependimentos. Só a sensação de que ainda poderia ter feito mais e melhor. O mundo não mudou para mim. Não vim ganhar mundos e fundos e não saio daqui rico e endinheirado. Bem pelo contrário. As únicas coisas que ganhei foram responsabilidades, acréscimo no volume de trabalho, acordar todos os dias às 5:30, no primeiro sono dos meus críticos de sofá, deitar todos os dias depois da uma ou das duas da manhã, cinco horas de transportes por dia, stress e desgaste.

E sabem que mais? Adorei tudo. Repetiria tudo outra vez. Enfim, talvez poupasse um pouco mais a minha família ao desgaste do meu trabalho. Mas repetiria tudo. Até porque trago a mais preciosa das conquistas. Trago o respeito e a amizade dos meus colegas de trabalho. Trago a amizade e a partilha dos meus companheiros de viagem. Trago a consciência de ter tentado ajudar o meu país com atos e com trabalho, mais do que com palavras. Trago, já, a saudade. A saudade dos projetos realizados. A saudade da face e da voz de uma pessoa quando resolvemos um problema. A saudade de uma instituição repleta de gente boa, de profissionais dedicadíssimos e competentíssimos. A saudade de mim. A saudade do meu país.

Tudo isto, hoje, nesta derradeira ida, tem um estranho aspeto de normalidade. Quase como se, ainda cá estando, já aqui não pertencesse.

Estou grato a Deus e à Vida por me terem proporcionado a possibilidade de desenhar esta janela no meu destino. Uma janela de realização. De onde, olhando-se a vida, se pode contemplar o passado e, simultaneamente, ter uma fugaz perspetiva do futuro.

O que conta na vida são as pessoas. Esse pouco eu sei. Porque só com outras pessoas, a pessoa de cada um de nós pode existir, fazer sentido, realizar-se. E é assim que quero terminar. Escrevendo sobre pessoas. Deixando uma palavra de apreço e reconhecimento a todas as pessoas que me acompanharam e apoiaram nesta viagem. Os meus familiares, os meus colegas de trabalho, todos, os meus companheiros de viagem, os meus amigos. Aqueles que confiaram em mim e estiveram comigo. Aqueles que conhecem a minha intrínseca dedicação, a minha genuína honestidade, a minha indomável vontade de aprender e fazer melhor. Aqueles que nunca viram em mim nada mais do que aquilo que sempre fui, sou e que nunca deixarei de ser. Um homem que convive com os seus defeitos, se aceita como é e se entrega de alma e coração ao mundo que o acolheu. Esse homem é simples. É honesto. Tem caráter. Erra todos os dias e todos os dias tenta acertar. E ama. Ama sofregamente a Vida. Cada centelha de luz. Cada sopro de Humanidade. Esse homem anda de comboio e gosta. Escreve e risca e volta a escrever. E ama de novo.

Até breve!
08:37, 31 de julho de 2012
João Paulo Videira

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