Crónicas de África - Outras Coisas do Quotidiano


Outras Coisas do Quotidiano

Maputo, 27 de outubro de 2012

É natural que, quando chegamos a um local desconhecido, seja de visita, seja em trabalho, tenhamos um olhar mais luminoso e complacente por não termos experimentado as rotinas e as agruras do mesmo. Eu penso que tenho, nos dias que correm, esse olhar em relação a Maputo. Parece-me, contudo, que não é uma perspetiva menos válida. É a perspetiva do momento e, por isso mesmo, para que se rememore mais adiante na linha dos dias passados, importa registá-la aqui.

Miúdos na Rua
Há nesta cidade um delicioso pormenor de que me não lembrava de assistir desde criança. Miúdos na rua. Magotes deles correndo e brincando e empurrando-se e jogando a bola na estrada, pelas ruas menos movimentadas, e em brincadeiras entusiasmadas pelos quintais, nas traseiras das casas. Não me refiro a crianças na escola, ou em família, ou numa festa de um amigo. Falo daquelas tardes infindáveis em que o tempo era todo nosso para o quisessemos e o que queríamos era brincar e crescer juntos. Essa liberdade primeira e genuína perde-se com o tempo e, em algumas sociedades, morre sufocada em regras. Em Maputo há uma música vespertina que nos embala à hora do lanche: os miúdos em correrias e gritarias entusiasmadas pela brincadeira. Sem esquemas de segurança, nem pessoas a guardá-los, nem escolas a prendê-los para serem livres. Só miúdos. Na rua.

O Chão
Um outro aspeto muito interessante que, curiosamente, me transporta também para a minha meninice, é a relação dos moçambicanos com o chão. É curioso que, em Portugal, e não só, há uma estratégia pedagógica no ensino pré-escolar a que convencionou chamar-se "tapete". E, nesse momento, educadoras e crianças estão ao mesmo nível. O do chão. Mas é só aí. No resto do nosso quotidiano, parecemos querer erguer-nos acima do chão. Ora, os moçambicanos não parecem ter essa veleidade e interiorizaram que o chão é mais do que a casa dos nossos pés. É a casa da nossa vida. Sentam-se no chão para venderem o que tiverem para vender, sentam-se no chão esperando uns pelos outros, sentam-se no chão para descansar, e, no merecido intervalo do almoço, deitam-se no chão. É comum ver homens deitados no chão junto à sua venda ou no intervalo do trabalho ou no fim de um excesso de cerveja. Não se escondem. Num relvado, num passeio, às vezes com os pés na estrada, outras vezes com o corpo semi-coberto por um carro estacionado, entregam-no à terra, ao cimento, à pedra, à relva, à erva, a qualquer que seja a cobertura e esperam, descansam, dormem... Talvez seja uma vida chã. Talvez seja a consciência intuída de que o chão é o céu dos homens. Talvez seja uma sábia perceção de que é esse o nosso lugar. Não sei exatamente o que é. Mas sei que se sentem à vontade no chão.

Armas na Cidade
Viver em Maputo é também aprendermos a interiorizar a presença das armas. A cidade está repleta de armas de fogo pesadas. Nada daquelas pistolinhas de trazer à cintura como usam as forças de segurança em Portugal. Na capital moçambicana, seja um militar, seja um polícia municipal, seja um segurança de um banco, ou mesmo de um hipermercado, os agentes da autoridade e da segurança estão sempre armados com armas de canos serrados ou com espingardas de cano longo ou ainda com metralhadoras. Ao princípio estranhamos um arsenal tão pesado a cada esquina, a cada porta, depois vamo-nos habituando a conviver com ele e já não estranhamos quando alguém nos pede os documentos e traz ao colo uma arma pesada, capaz de estragos significativos.

Modernices
Já aqui tenho contado, a propósito das assimetrias desta cidade, alguns pormenores de tecnologia avançada a ser utilizada em Maputo. Um dos bancos locais está agora a lançar um produto muito interessante. Chama-se Conta Móvel e consiste na substituição do cartão de débito pelo telemóvel. Uma vez feita a ativação da Conta Móvel pela primeira vez, pode transferir-se dinheiro para o telemóvel. Depois, numa máquina ATM, insere-se o número do dito telemóvel, o PIN de segurança e já está, pode levantar-se o dinheirinho. Dá jeito para quando nos esquecemos do cartão e para ter o dinheiro distribuído por diversos meios de acesso, não vá o diabo tecê-las! Modernices...

IDE

Hoje foi o dia do IDE. Trata-se de uma festa religiosa muçulmana que assinala, salvo erro, o fim da peregrinação a Meca. É um momento de alegria e agradecimento. O interessante é que o IDE é universal, ou seja, é celebrado por muçulmanos em todo o mundo. Em Portugal, naturalmente, quase não dou por esta celebração, mas estas são terras com cheiro a Oriente e com uma forte multiculturalidade. Tão forte, que foi decretada, pelo Governo, tolerância de ponto para os trabalhadores muçulmanos. E, também na escola, se sentiu a ausência de uma parte da nossa comunidade de aprendentes, os alunos que estavam celebrando o IDE.


O quotidiano, em Maputo, é diferente, mas não é diferente por uma grande razão, é diferente por todas estas que se juntam e fazem da vida aqui um passar do tempo bailado ao som das brincadeiras dos miúdos.
jpv

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