Crónicas de África - Três Meses de Esperança


Crónicas de África - Três Meses de Esperança

Maputo 15 de dezembro de 2012

Todo o dia fora de antecipação e borboletas no estômago. A noite estava quente, acolhedora, e o aeroporto de Maputo tinha as entranhas repletas de portugueses à espera de portugueses. Para nós, aquele avião trazia a carga mais preciosa, o passageiro mais especial. O nosso filho chegou para nos visitar na passada quinta-feira à noite. Abraços infindáveis, as perguntas já feitas ao telefone e no skype agora repetidas com o calor da presença de quem nos anima a vida. Não é fácil descrever o que se sente com a ausência de um filho, e menos fácil ainda é descrever o momento da reunião. É uma completude, um preencher de vazios, é um refazer de sentidos e uma pacificação, é o afastar de um sobressalto constante no peito, é uma nuvem que se vai para o sol poder brilhar de novo. É só isso. E é isso tudo!

No dia seguinte, completaram-se três meses sobre a nossa chegada a Moçambique. Um trimestre de certezas e incertezas, de alegrias e dúvidas, de uma adaptação constante a tudo. Um trimestre de que ficam aqui alguns, poucos, aspetos que o marcaram.

Marco e Sandrine
Incansáveis, sempre prestáveis e absolutamente fundamentais na nossa chegada e adaptação até conseguirmos dar os primeiros passos sozinhos. Conhecer a cidade, onde ficavam as portas que mais depressa e urgentemente precisaríamos de abrir, encontrar casa, perceber hábitos, rituais e as atitudes das pessoas... tudo ficou mais fácil com eles.

O Nunes
O Nunes como é conhecido por cá ou o Zé, como às vezes ainda lhe chamamos, foi uma ajuda preciosa para encontrarmos um carro, perceber os valores, o tipo de carro que mais se adequa à cidade, fazer um bom negócio, as primeiras manutenções, enfim, conseguirmos autonomia e mobilidade. O Nunes ajudou e esteve sempre sereno. E, sobretudo, foi paciente!

A Escola
Percebemos, quando chegámos, a curiosidade dos colegas e até alguma interrogação sobre o que viríamos fazer. Rápido se percebeu que éramos do clã. Só mais dois professores. E, desde a direção a todos os colegas na sala de professores, fomos recebendo dicas de adaptação através das inúmeras histórias e múltiplos conselhos que nos foram dando. E os alunos entraram nesse circuito, Os meus pais fazem assim, E já foi ali, Olhe, quando lhe acontecer isto assim, assim, faça o seguinte... E fomos vencendo o trabalho e criando os nossos próprios espaços e pode dizer-se, ao cabo de três meses, pelo menos, não somos estranhos e temos mesmo alguns amigos novos.

A Casa
Criámos, porque se trata de uma pessoa séria, uma boa relação com o senhorio. A nossa casa tem vindo a crescer por dentro e vai ficando mais confortável à medida que o tempo passa. Em certa medida, acho que as pessoas tentam, com as devidas adaptações, replicar a sua vida original.

Maputo
Meu Deus, havendo de tudo como em Portugal, estando repleta de portugueses, o facto de ser uma cidade africana, muda tudo. Como a vida é diferente! Nada tem nada a haver com o nosso modo de vida. Os mercados de rua, as pessoas a vender de tudo pelas artérias da cidade, os rapazes oferecendo-se para levar as compras, o trânsito caótico e cuidadoso, a alegria das gentes, o falarem para nós na rua ou num espaço público só porque sim, só porque somos uma pessoa e ele também, os buracos na estrada, os edifícios novos a despontar em cada esquina, a presença constante de armas pesadas nas forças de segurança, os encontros com os agentes da polícia de trânsito, tudo com a marca do improviso, da calma, do hei de fazer, da bonomia e da simpatia e dessa fantástica relação entre as pessoas com o dinheiro a mediá-la. Maputo tem lixo, sim. É um problema a resolver. Mas tem também a marginal e tem a 24 de Julho ululante de gente e fervilhante de vida. É uma grande cidade e, ao mesmo tempo, uma pequena aldeia. Traçado pombalino, é uma urbe de que nos apropriamos com facilidade. A vida é dura, claro, para quem emigra para África, mas, queiramos nós agarrá-la com firmeza, pode ser bem agradável. Pelo menos, há esperança.

Clima
São oito horas e já está calor. E vai continuar a estar calor, às vezes roça o insuportável, depois, em poucos minutos, o céu escurece, desaba uma água forte e caudalosa, toda a cidade é varrida pela bátega e meia hora depois vem a calmaria de novo. Maputo não é uma cidade insuportavelmente quente. A brisa do mar adoça a agressividade do calor. A brisa do mar e a bátega de água lavadoira!

Arte e Festa
É um povo que se exprime com os materiais mais nobres e com os mais rudimentares também. Com três latas de Coca-Cola e um fio de arame, faz-se uma carrinho de brincar, um helicóptero ou um LandRover Defender. Trabalham a madeira com arte e o ferro e o tecido. E pintam em tela com tinta ou em pano com tinta e cera e têm pormenores deliciosos de criatividade. Estão sempre em festa. Cumprimentam-te na rua em festa porque sim. Cantam no local de trabalho, já assisti a caixas de supermercado e balconistas de um banco, dançam enquanto atravessam a estrada e têm o culto da músico e o ritmo irrequieto nas pernas, nas ancas, no corpo todo.

Chapas
Não é possível ficar-se indiferente. São aos milhares pela cidade e transportam toda a gente de todo o lado para todo o lado. Interferem com as vidas das pessoas e uma greve de utentes a este serviço para completamente a cidade.

Ritmos
Deitar por volta das 20h, 21h, levantar com a luz das 4:30h, 5:30h, começar aulas às 7:00h, almoçar às 11:30. Encarar as 8h como meio da manhã. Não forçar ritmos, aprender a navegar neles. Assumir que o descanso é para descansar. 

RSA
Presente em hábitos do dia-a-dia, em expressões de fala, em hábitos alimentares, em objetos que se trazem no carro ou se guardam em casa, a África do Sul é uma vizinha donde chegam ventos culturais todos os dias.

Mail, Facebook, Skype, Amigos e Familiares
As comunicações por e-mail, as mensagens no FB, as vídeo-chamadas pelo Skype mantiveram presentes os amigos de lá, dessa Pátria fria e distante e mantiveram a presença visual e sonora da família. 

Negociar em Meticais

Viver em Maputo é estar em permanente negócio, é medir forças em meticais constantemente. Tudo tem um preço, tudo se negoceia, tudo se vende. Não só coisas. Serviços. Tudo o que possa resultar no amealhar de umas moedas pode ser transacionável. 

Portugal
Lá longe... esfumado nas mentes e vivido nelas também. É sempre a Pátria. Uma pátria donde chegam com frequência notícias de apreensão. Sim, é para voltar, mas não será já. Portugal terá de esperar.

O Futuro

O futuro, para já, é aqui. Aqui estão as soluções e a esperança de crescer. Aqui está o trabalho e a vontade de viver. Sempre desalojados. Sempre realojados da esperança e da vontade de superar. Hoje, enquanto estávamos no trabalho, o nosso filho andou pela cidade a conhecer, e a falar com as pessoas que mostraram gostar muito dele e do seu aspeto tranquilo. Chamam-lhe "O Argentino", "O Reggae Man", "O Messi" ou o "Brother". E comprou umas sapatilhas All Star por 250 meticais, 6€. Em Portugal custam 70€. Sim, também para ele há esperança. Sim, também para ele, ela parece morar aqui.

Três meses repletos de dificuldades e alegrias, de crescer como pessoas na multiculturalidade que é a sociedade moçambicana. Uma sociedade aberta e simpática onde há riscos e onde há, sobretudo, oportunidades. Mesmo estando um pouco "vaidosos" com a nossa coragem para mudar de vida aos 45 anos, somos humildes e estamos gratos a todos os que se cruzaram connosco por bem. Três meses! Venham mais três!

jpv

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