Receba as Flores que lhe Dou


Querida Mana,

Por vezes, quando menos esperamos, de onde menos esperamos, emerge em nós uma memória que existia, viva, mas adormecida. Aconteceu-me esta semana. E o engraçado é que as memórias alimentam-se de outras memórias e nós relembramos uma coisinha e, se pensarmos nela, afinal havia um universo inteiro agarrado a ela.

Era noite tardia. Vagueava pela net à procura de quase nada, umas ideias para uns materiais e, às tantas, alguém tinha feito um vídeo sobre o assunto. Cliquei, mas o vídeo estava indisponível. Contudo, ali ao lado, naquela carreirinha de sugestões, estava um clip chamado "Receba as Flores que lhe Dou".

Nem precisei começar a ouvir porque o que ecoou de imediato na minha mente não foi a voz do Nilton César. Foi a da nossa mãe. Fosse em casa, enquanto cozinhava, limpava, passava a ferro, fosse na loja enquanto fazia uns embrulhos ou marcava uns produtos, lembro-me de a ouvir entoar, como quem anuncia ao mundo que as coisas podem ser sempre feitas com boa disposição, esses dois versos iniciais:
Receba as flores que lhe dou
E em cada flor um beijo meu...

Eu acho que essa espontaneidade, essa natural tendência dos pais para mostrar aos filhos que o mundo é um lugar agradável para se estar e a vida é preciosa e deve viver-se cada minuto com ilusão e esperança, está, definitivamente, a perder-se. As nossas crianças crescem a ouvir falar de problemas, de crise, de competição, de numerus clausus, de impossibilidades e não ouvem os pais cantar ou declamar. A mãe não cantava só esta. Se bem te lembras, às vezes lá vinha com o "Ser marinheiro//Deste velho cacilheiro", e aquilo despertava em mim a imaginação e a vontade de viver e ser feliz e conhecer esses fantásticos universos que as canções que a mãe trauteava refletiam. E sempre que alguém fazia anos, lá vinha ela, como às vezes ainda faz, Com que então, caiu na asneira...

É preciso alimentar as crianças de esperança, é fundamental semear nos jovens a alegria de viver e a vontade de ser feliz. É mais preciso isso do que qualquer outra coisa. Não interessa que formes muito bem uma pessoa, que a dotes de excelentes recursos financeiros, se não a ensinares a sonhar. São os sonhos que impelem o homem a mais, a melhor, a superar-se e os sonhos são livres e grátis. Eu sonhei. E, naturalmente, muitas vezes me desiludi, mas nunca baixei os braços porque os sonhos reproduzem-se e são fáceis e alimentam a capacidade de realização. 

Fiquei retido na letra. E, numa primeira reação, pensei que era um texto lírico de um exagero absurdo, e depois reparei que estava a cantá-la e a sabia de cor. Eu, que, momentos antes, nem me lembrava que a canção existia! E percebi que não era um exagero. Os nossos pais viveram aquelas palavras, personificaram aquele romance e, mesmo hoje, apesar da separação que a lei da vida impõe, ainda se pode dizer "Que seja assim por toda a vida..."

Acho, Mana, que somos filhos do sonho. O sonho dos nossos pais que era tão singelo e por isso se concretizou. E acho também que somos filhos da música. A música que a mãe trauteava, a música que o pai, às vezes, dançava... só um bocadinho...

Beijo,
Mano. 

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