A Paixão de Madalena
Livro II - O Cordeiro de Deus
12. É preciso
conhecermos as pessoas para as percebermos. É, sobretudo, preciso conhecê-las
antes de as julgarmos. A história que agora se contará não justifica o futuro,
mas derrama luz sobre ele.
Já estiveram
os três à mesa. Agora está só o pai, perna cruzada, jornal aberto, e o filho
olhando o que resta da refeição, girando o garfo sobre a comida, um braço
estendido ao longo da mesa e a cabeça sobre ele. Carne de jardineira não lhe agrada.
Sobretudo não percebe o que veem os adultos no feijão verde e, como não está
autorizado a sair da mesa antes de terminar, vai espalhando a comida no prato
e, de quando em vez, pergunta:
-Já posso?
-Come o que
tens no prato!
E aquela
frase, assim contundente, caiu-lhe em cima como uma espada de cortar esperança.
Não lhe resta mais do que continuar a remexer a comida fria à espera que o pai
se canse. Numa reviravolta que dava a um pedaço de feijão verde cortado aos
quadradinhos, o vegetal saiu-lhe disparado do garfo, bateu-lhe no peito,
tabelou no joelho e anichou-se no chão, mesmo por baixo dos seus pés. A
primeira reação foi olhar para o pai. Felizmente tinha a cara por trás do
jornal e não tinha visto. Enganou-se no juízo. Saiu da cadeira e foi abaixo da
mesa buscar o pedaço de feijão verde e era lá que estava quando tudo recomeçou.
Lembra-se do sabor a sangue logo após o primeiro pontapé a encher-lhe a cara e
a cortar-lhe os lábios, lembra-se de bater com a parte de trás da cabeça na
perna da mesa e depois não se lembra de mais nada. Erguido pelos cabelos,
esbofeteado e esmurrado ao som de uma letra que variava pouco, Julgas que ando a matar-me a trabalhar
para te pôr a comida na mesa e tu depois a atirares para o chão? Hã? Hã?
Responde-me! Não! Não quem? Não, papá! E achava que tinha respondido bem e
por isso não percebeu a sequência de bofetadas e murros após a resposta. A voz
da mãe ao longe gritando, depois pegando nele, serenando-o, os cuidados e a
humilhação numa próxima refeição em família:
-Aquele ainda
esta semana levou uma tareia à moda antiga. A deitar-me a comida para baixo da
mesa, o sacanita… depois lá veio a mãe com falinhas mansas e paninhos quentes.
Não me importa. O pai dá a educação, a mãe dá os mimos. Sempre assim foi,
sempre assim será.
Quando entrou
na escola, Mário Só não pôde evitar a pergunta da professora:
-O que te
aconteceu Marinho?
-O meu pai
bateu-me, disse o miúdo com inocência e verdade.
Bernandino Só
foi chamado à escola e quando lá chegou ralhou com a professora, reclamou para
si a função de educador, ela que se limitasse às tabuadas e às cópias que o pai
era ele, sabia muito bem o que estava a fazer, filho seu nunca lhe haveria de
faltar ao respeito. À noite, chegou a casa, fechou-se num quarto com o miúdo,
gritando-lhe que o que se passava em casa não se contava na rua porque só à família dizia respeito,
tirou o cinto e descarregou na criança a humilhação de ter sido chamado à
escola. No dia seguinte a professora percebeu que a cavalaria da besta
Bernardino Só havia de novo carregado sobre a pobre criança e já não lhe
perguntou nada. De tempos a tempos aparecia com marcas visíveis do calvário que
era o seu quotidiano e a professora aprendeu a rezar e a pedir que não se
repetisse muitas mais vezes. Mário Só não tinha irmãos, razão porque colhia
todas as atenções do pai que jurara fazer dele um homem. E o seu conceito de
fazer dele um homem era ensinar-lhe palavrões, comprar-lhe cadernetas com os
cromos da bola e verificar se ele já tinha decorado os nomes dos jogadores do
Varzim e do Farense e perguntar-lhe, em público, Olha lá, pá, já apalpastes o
cu a alguma gaija lá da tua escola? O coitado não respondia e, quando chegava a
casa, a mãe apressava-se a fechar-se com ele no quarto a dizer-lhe que aquilo
eram brincadeiras do papá, para não levar a sério, nem repetir aquele
palavreado.
Certo dia,
estavam os três à mesa, a mãe acabara de sentar-se. Como habitualmente, fizera
tudo sozinha, o jantar, a cozinha arrumada que Bernardino não queria ninguém à
mesa com a casa de pantanas, a mesa posta, as sobremesas prontas, a sua comida
quase fria, o marido e o filho quase comidos e bebidos. E assim que se sentou,
Bernardino atacou:
-Traz-me os
palitos!
Num momento
de cansaço e inusitada ousadia, Maria das Dores respondeu-lhe, educada, mas
declinando o pedido:
-Ai,
Bernardino, vai lá tu que ainda agora me sentei.
As costas da
mão dele voaram e assentaram-lhe com violência tal que a senhora caiu
desamparada. Bernardino percebeu o ar perplexo do filho e disse-lhe como quem
ralha:
-E tu vê lá
se aprendes a ser homem. Homem que é homem não admite certas coisas.
E quando
Mário Só faz menção de levantar-se para ajudar a mãe, foi impedido por verbal e
inequívoco comando:
-Deixa-te
estar no teu lugar! A tua mãe sabe levantar-se sozinha.
Mais tarde,
Bernardino abordou o miúdo:
-Mário, ouve
o pai, o pai gosta muito da mamã, mas a vida é difícil, tem de haver rigor e
respeito e o que hoje te pode parecer mal, amanhã vais perceber e valorizar, o
pai não faz nada que não seja para bem da mamã e de ti, percebeste?
-Sim, papá.
-Então vá,
vai lá dormir.
E Mário Só
foi deitar-se e adormeceu nessa noite anestesiado pela violência dos gestos do
pai. De manhã percebeu que a mãe estava marcada na face e deu-lhe um abraço
mais demorado. Maria das Dores percebeu e recuperou a vontade de viver.
Enquanto
andou na escola, Mário Só foi um miúdo submisso e cumpridor, mas sem qualquer
ponta de imaginação. O medo, por vezes, tolhe as almas e elas, por defesa,
encolhem-se e podem nunca chegar a nascer para o mundo. Mário Só era um jovem
profundamente respeitador, mas nunca soube o que era o respeito. Encolhia-se
por medo e foi por via desse mesmo medo e desse encolhimento que nunca foi
aluno para além do sofrível. Aos dezasseis anos, assim que pôde, saiu da escola
e foi trabalhar de servente para as obras. E foi aí que aprendeu a fumar um
cigarro, a beber meia dúzia de minis numa tarde, a puxar pelo cabedal, a erguer
a espinha e a trabalhar a vida. Sempre submisso, quase sempre discreto, a
evitar os palavrões que usava de quando em vez e com parcimónia só para que
ficasse claro que era tão homem como os outros. E começou a sair à noite,
sobretudo ao fim de semana e uma dessas noites trouxe-lhe o primeiro corpo de
mulher. Pago, bem entendido, mas, ainda assim, a melhor oferta que o Universo e
a vida lhe haviam feito em quase vinte anos de existência. Cedo se apercebeu
que transportar era com ele. O carro de mão, o empilhador do armazém de
construção, a moto do Joaquim, mais tarde, uma carrinha de caixa aberta, muito
velha, que o empreiteiro usava para materiais de menor porte. Era rápido e
eficaz nas suas escapadelas ao armazém para ir buscar vinte e cinco quilos de
cimento cola, uma caixa de azulejo que tinha faltado nas contas, são tramados,
os cortes, geram muito desperdício, duas pontas de ferro de doze, meia palete
de blocos. Um dia, a polícia mandou-o parar e ele parou e respondeu a tudo com
verdade e submissão e o patrão viu-se e desejou-se para se safar da enrascada
de ficar com a carrinha apreendida e uma multa monumental. Propôs pagar-lhe a
carta e ir descontando no vencimento, mês a mês, em pequenas parcelas. Mário Só
sorriu e aceitou. Não falhou o código e menos ainda a condução. Depois, quem o
queria ver, era montado na carrinha velha a acartar materiais de um lado para o
outro. O próximo passo que lhe pareceu lógico foi tirar a carta de pesados e,
no mesmo dia em que a conseguiu, teve uma oferta de emprego. Pediu um avanço
para pagar uma dívida. Deram-lho e ele foi ter com o empreiteiro e acabou de
pagar o que lhe devia. Puseram-lhe um carro pesado nas mãos, um mapa, uma
listagem de fornecedores e clientes e a sua tarefa era ir buscar e distribuir
caixas de bacalhau. Não tinha horário. Tinha fretes por dia. Se os acabasse
cedo, saía cedo. Se os acabasse tarde, saía tarde. Descansava um dia por semana
e recebia dez vezes mais do que a acartar baldes de massa e carros de mão de
areia nas obras. Alugou uma casa velha e pequena onde ia dormir e via televisão
nas folgas. Passava algum tempo em bares frequentados por camionistas e os seus
afetos entregava-os às prostitutas de beira de estrada. Um dia estranhou porque
uma delas segurou-lhe a cabeça entre as mãos e disse:
-És só um
menino cheio de medo.
Ele
estremeceu:
-Que dizes?
-Esquece. Não
é nada. Eu tenho a mania que conheço os homens pela maneira como…
-Bebeste?
-Sim, bebi!
Que parvoíce a minha, estar para aqui a dar conversa a clientes. Estou paga,
estás servido, até à próxima, se a houver.
Passou a
procurá-la. Encontrou-a umas poucas de vezes. Gostava da forma como ela lhe
acariciava a nuca enquanto ele suava em cima dela e gostava, sobretudo, dela
ter sempre uma palavra no fim. Uma provocação. Uma observação.
-Olha lá, já
pensaste em ter uma namorada a sério?
-Já.
-E…
-Não sei o
que dizer, não sei o que fazer… e esta vida de um lado para o outro com o
camião também não ajuda…
-Tens medo
das mulheres?
-Não. Tenho
medo de mim ao pé das mulheres.
-Tu é que
sabes, mas isto não é vida.
-A tua?
-Não. A minha
faz todo o sentido. Escolhi-a. A tua! A tua é que está uma baralhada. Não te
percebo, miúdo, não te percebo.
-Não há nada
para perceber. Sou um tipo burro que gosta de conduzir e teve a sorte de
conseguir ganhar dinheiro com aquilo que gosta de fazer.
-Não sei… há
qualquer coisa baço no teu olhar…
Nunca mais o
viu. Nem poderia. Ele emigrou. Um dia, a mãe, com quem falava de tempos a
tempos, a quem mimava às escondidas do pai que decidira não rever desde que
fora trabalhar, disse-lhe com esperança na voz:
-Tenho uma
novidade.
-Ai sim?
Conta.
-O tio
António perguntou por ti.
-O da Suíça?
-Sim. Queria
saber como estavas e eu disse que bem, que estavas um homem, tinhas trabalho,
eras independente, e ele perguntou o que fazias e eu contei um pouquinho da tua
história, mas isto já foi há tempos…
-E só agora
me contas?
-Na altura
não dei importância, mas esta semana ele voltou a ligar, diz que tem lá
trabalho para ti, que apareceu lá um emprego de motorista, acho que é para
andares com um senhor que é advogado, carro bom, alojamento e alimentação e o
ordenado é muito melhor do que aqui… querem um português. Dizem que somos de
confiança e tio conhece-o e falou em ti…
-Isso é a
sério?
-É. Achas que
a mãe gosta de dar-te esta notícia? Vais para lá e nunca mais te vejo, mas o
teu bem é o meu bem e se tu fores para melhor, eu fico feliz…
-Dá cá um
beijinho.
Mário Só
abraçou a mãe, beijou-lhe as faces e poucas emanas depois desembarcou em
Genebra.
O salão está
escurecido. É banhado por ecos de luz emanada da mesa central sobre a qual
pende uma lâmpada longitudinal que ilumina o pano verde. As bolas está já muito
distribuídas. Por cima de um sussurrar abafado, ouve-se o silêncio que invade a
sala. Madalena está debruçada sobre a mesa de snooker, o taco na mão direita
assente sobre os dedos da esquerda que ela apoia na mesa. É preciso que a bola branca vá ao fundo da mesa tabelar com efeito e volte para
trás a empurrar a bola preta para dentro do buraco no mesmo topo onde se
encontra agora a bola branca, mas no canto oposto. Estão separadas por uma bola
inoportuna e será preciso arriscar esta longa viagem. A branca já lá vai,
Madalena ergue-se, , respira fundo e reza para dentro. Se falhar é o seu fim.
Se ganhar, são quatro mil francos. Uns meses a respirar melhor o quotidiano,
alguns bens fundamentais para as crianças. E a bola rola serena, quase lenta, a
sala está suspensa da sua trajetória, o adversário e a assistência esperam
quase impacientes. Nunca uma mulher havia participado no torneio de Genebra,
quanto mais ganhá-lo. A bola já encontrou a tabela lá ao fundo, faz a viagem de
regresso descrevendo um vê. Falta saber se é um vê perfeito. Ela aí vem…
A vida tem
sido difícil. Não lhe tem dado tréguas. Madalena decidiu procurar todas as
saídas, experimentar todos os caminhos. Enfim, quase todos. Pediu autorização
para ficar meia hora a treinar numa das mesas de snooker depois de fechado e
limpo o pub. Só pelo facto de ser tão pouco habitual ver uma mulher jogar,
foi-lhe concedida permissão. E ela ficava, no fim de um dia de trabalho,
espreitando tabelas, traçando percursos, ensaiando efeitos. Um dia pediu
dinheiro emprestado ao patrão para se inscrever num torneio, era ao sábado, ao
final da tarde, sem conflituar com o seu horário de trabalho. Ele não lhe
emprestou o dinheiro, pagou-lhe a inscrição:
-Pago para
ver até onde vais.
O prémio
contemplavam os primeiros quatro classificados. Madalena terminou essa longa
jornada em quarto lugar, fez questão de devolver o dinheiro da inscrição e
guardou o resto. Era pouco. Para os outros. Para ela e os seus meninos
representou imenso. Mais três competições deste tipo nos primeiros quatro
lugares e poderia inscrever-se no torneio de Genebra. Jogou cinco para
conseguir a qualificação. Sempre pedindo e devolvendo a verba da inscrição. Da
única vez que não chegou ao prémio, pagou com horas extra. Via um pouco menos
as crianças, mas o torneio de Genebra rendia quatro mil francos. Treinou mais
intensamente nos últimos tempos. Um dos frequentadores do pub, que ainda
conhecera e confraternizara com Kyle, ofereceu-lhe um estojo com um taco desmontável:
-Tome, nunca
fui bom nisto. Ganhe o torneio por nós, pela malta aqui do bairro.
Sabia que
teria de estar ao seu melhor nível para chegar à final e, chegando, tudo
poderia acontecer. O seu fraco… o seu fraco era ter pena do adversário e, por
isso, falhar em momentos cruciais. O patrão ralhava sem cessar:
-Tens de
manter o nível até ao fim, a precisão na tacada, o instinto de vitória, não
podes amaciar, desfaz os tipos, imagina que são teus inimigos, pensa nos teus
filhos, faz o que quiseres, mas não tenhas pena dos gajos!
À medida que
se aproxima da bola preta, a branca perde velocidade, vai acariciá-la, terá de
ter ainda a força suficiente para empurrar a outra que está a meia dúzia de
centímetros do buraco… toca-lhe de mansinho, a preta desliza suavemente, a
direção é perfeita, chega junto do buraco e parece parar, hesita, suspende-se
como a respiração da sala e… tomba! Está lá dentro! A sala explode em aplausos,
o patrão vem abraçá-la, Albertina corre para ela, segura-lhe a cabeça entre as mãos
enquanto grita, Conseguiste! Conseguiste! Até o homem que emprestou o nome a
Jacob a veio felicitar. Sessão de fotos e entrega do prémio, garrafas a
salpicar champanhe, as felicitações do adversário. Madalena espera que os
ânimos acalmem um pouco e vai arrumar o taco no estojo. Estava de costas para a
multidão em festa quando sentiu uma mão no seu ombro. Era Mário Só.
-Parabéns,
Madalena.
-Obrigado,
Mário.
E não foram
precisas outras palavras, pendurou-se no pescoço dele e beijou-o
apaixonadamente com o coração a bater forte como não julgara até esse dia que
pudesse voltar a acontecer. Daí a seis meses estariam casados e daí a outros
seis divorciados. Foi simples e fulminante a história.
Foi quando
fazia uma jogada de precisão. Baixou-se sobre o tapete verde da mesa. Tinha a
bola branca alinhada com a preta. Era uma tacada distante mas limpa. Só
necessitava de uma pancada forte, seca e precisa. Olhou a bola branca, aqui
perto, moveu o taco para a frente e para trás com vigor em movimentos de
aproximação à bola, levantou os olhos sem levantar a cabeça e procurou a preta
ao fundo da mesa para traçar a linha imaginária que as haveria de unir e, por
cima dela, ao fundo da sala, em visão enevoada e periférica, a zona pélvica
dele, do adversário que assistia suspenso aos seus movimentos. Num relance,
lembrou-se de que Kyle chamava àquilo, na intimidade, o "pack" ou
ainda "um rei e dois súbditos", levantou um pouco mais o olhar e
encontrou o tórax definido e os braços musculados encimados por um olhar verde
e cristalino cheio de promessas. Ainda não havia reparado nele. Aquele olhar
continha promessas de risco e a vida tem sido tão dura e tão repetitiva que um
pouco de risco só poderia ser o sal que lhe vinha faltando. E desceu-lhe um
calor de desejo que depois lhe aflorou à cara, era inacreditável, tanto tempo
depois de ter feito amor pela última vez, emerge-lhe na mente um pensamento
erótico que lhe rebenta na face no meio de uma jogada que valia cem francos.
Foda-se!, pensou. Puxou o taco atrás, bateu a bola. Falhou. Ele concluiu o jogo
com serenidade e no fim, quando os presentes faziam conversas e desenhavam
teorias acerca do que poderia ter acontecido, ele veio felicitá-la:
-Parabéns.
Jogou muito bem.
-Mas perdi.
-Pois… essa
foi a parte que não percebi.
-Claro que
percebeu. Você colocou-se à frente do meu campo de visão para me distrair.
-Não sabia
que constituía distração para si.
-Na altura
constituiu.
-E agora?
-Agora,
depende do que disser…
-A única
coisa que me ocorre dizer é que não ganhou o melhor jogador, você joga muito
melhor do que eu, talvez lhe falte certo instinto assassino.
-Pois, mas eu
sou mãe de duas crianças.
-Pense que o
que está a fazer salvaria a vida delas.
-E salvaria…
-Ah… joga
pelo dinheiro.
-Entre outras
coisas.
-Levante o
prémio. Você mereceu-o.
-Jamais!
Nunca aceitei uma esmola, nunca recebi nada que não tivesse conquistado.
-Compreendo,
mas posso pagar-lhe o jantar?
-Se não tiver
melhor companhia…
-Tenha ou não
tenha, neste momento, não quero outra coisa que a honra da sua companhia.
-Disse as
palavras corretas, senhor…
-Mário Só.
-Mário.
Tratei-o por senhor porque não o conheço, nunca fomos apresentados.
Mário Só
soltou uma gargalhada e acrescentou:
-Pode e deve
tratar-me só por Mário, mas não foi isso que eu quis dizer quando revelei o meu
nome. Eu chamo-me Só de apelido.
-Ah! Mário
Só!
-Exato! E a
senhora…
-Só Madalena.
-Mau…
-No meu caso,
o só era para não usar a senhora…
Jantaram.
Madalena revelou-lhe que estes pequenos torneios no pub eram uma simpatia do
patrão para ela ter com quem treinar uma vez que estava para inscrever-se no
torneio de Genebra. Mário Só confessou-se admirador da sua forma de jogar e
custasse o que custasse, estaria no torneio para apoiá-la. Levou-a a casa.
Despediram-se educadamente e com algum pudor e passaram a conversar com
regularidade no pub, sobretudo, porque ele esperava pela hora dela sair e
levava-a a casa. E foram partilhando o que pensavam da vida, algumas coisas
sobre os seus percursos até chegarem ali. Ficaram amigos de conversa com o
desejo latente não consumado por prudência de ambos e particular contenção
dele. As suas vidas haviam sido demasiado complexas para acreditarem, assim, de
repente, no amor e uma cabana. Andaram neste bailado das palavras e das
conversas cúmplices cerca de seis meses até que um dia Mário Só se encheu de
coragem e lhe disse:
-Madalena, tu
tiveste a tua vida, eu tive a minha, já percebemos que nos entendemos, que
gostamos da presença um do outro, não quero desconcentrar-te do torneio de
Genebra, mas não achas que merecemos um pouco mais do que conversar à noite
depois do teu trabalho?
-As conversas
são boas…
-Por isso
mesmo, porque são maravilhosas, porque és quem és, porque sou quem sou… pensa!
-Já pensei.
-Já
pensaste?!
Mário Só não
conhecia a Madalena determinada, decidida e até impetuosa que o leitor vem
conhecendo e não sabia, também, que esta mulher estava ansiando mudança e
risco. Por isso se surpreendeu com ela:
-Estás a
pedir-me em casamento?
-Talvez não
tenha usado as melhores palavras, mas queria ir para aí.
-Faltam três
semanas para o torneio. Se eu ganhar, beijo-te e casamos.
Mário Só
ficou perplexo. Será que tudo não passava de um jogo?
-E se não
ganhares?
-Beijas-me tu
e a seguir casamos.
O homem
respirou de alívio. Abraçaram-se. E foram para suas casas sonhando acordados.
Mil
novecentos e noventa e oito. De Portugal chegam ecos de uma exposição
internacional de grande impacto. Em Genebra, Madalena ganha um torneio de
snooker , beija um homem e casa-se recatadamente. Só alguns amigos e familiares
de ambos a presenciarem o momento. A mãe de Mário Só chora de alegria,
Albertina vive numa intrigante e saudável desconfiança em relação ao rapaz das
falas mansas, Jacob e Mariana parecem conviver bem com a presença do novo homem
da casa. O quotidiano é desafogado e feliz sem ser apaixonado, mas, honestos
sejamos, nunca se confessaram paixões entre estes dois. Ele trabalha. Ela
trabalha, deixou de novo o pub, fica com mais tempo para os miúdos e à noite
pode continuar, agora no conforto do lar, todas as conversas que havia iniciado
com Mário Só quando ele a vinha pôr a casa após o turno nu pub. Aos fins de
semana passeiam e dedicam-se a dar algumas alegrias aos miúdos. Ao domingo,
Madalena entra na cozinha e prepara uma refeição esmerada. Foi num desses
domingos, durante uma dessas refeições especiais. Madalena andava numa roda
viva a preparar tudo, estava impaciente, as coisas na cozinha não correram como
esperara. Mariana, normalmente uma ajuda preciosa, estava impaciente e até um
pouco rabugenta, Jacob agia fazendo justiça à condição de criança, batia com os
talheres nos pratos e gritava que queria comida, não era de birra, mas
enervava. Madalena conseguira servir a refeição, mas a sobremesa
complicara-se e ela andava para cá e
para lá, Mário Só estava irritado com aquela inusitada barulheira à mesa de uma
refeição que costumava ser tranquila e não comera descansado. Junto ao final da
refeição, por entre o barulho e a movimentação atarefada de Madalena, disse:
-Trazes-me os
palitos?
-Não posso,
levanta-te e vai buscá-los.
Ele franziu o
sobrolho, levantou-se contrariado e foi. Poderia não ter-se cruzado com ela e
tudo teria sido diferente, mas cruzou-se com ela na cozinha:
-Podias ter
levado a merda dos palitos à mesa.
-Podias ter
levantado o cu da mesa para ajudar.
Ele já tinha
passado por ela quando ouviu a resposta. Uma coisa antiga e má, uma semente
ruim de gestos impróprios, acordou em si, cresceu, fez-se gigante no seu peito:
-Vê lá como é
que falas comigo…
-Como tu
mereces.
As costas da
mão dele rebentaram-lhe os lábios, o tabuleiro de vidro que tinha nas mãos caiu
ao chão, ela deu dois passos desamparada, ele cresceu para ela e esbofeteou-a
quantas vezes lhe apeteceu. As crianças fugiram para o quarto, ele levantou a
mão de novo mas apercebeu-se de que ela já não estava consciente. Saiu de casa.
Só voltou à noite. Já não encontrou ninguém. Madalena acordou. Olhou em volta e
tudo lhe parecia irreal. A vida voltara a testá-la, a surpreendê-la. Havia
entre ela e as forças da natureza humana este constante medir de resistência.
Estava cansada. Sangrando dos lábios. Colocou-se de frente para o espelho do
guarda fatos toda nua e fotografou-se. Telefonou a Albertina. Colocou as coisas
mais essenciais em dois táxis e enquanto a avó levou as crianças para sua casa,
Madalena foi à polícia e apresentou queixa. Mário Só não negou nem rebateu as
acusações. Foi condenado a serviço comunitário, não aproximar-se menos de
quinhentos metros da residência de Madalena e a pagar-lhe uma indemnização
imediata. Ou o faria com meios próprios ou o Estado o faria por si e Mário Só
ficaria devedor do Estado com juros. Pagou com dinheiro próprio. Madalena abriu
uma conta separada da sua conta à ordem e considerou aquele dinheiro um findo
para a educação das crianças e a sua própria. Pressentiu que estas coisas
aconteciam por deformação de caráter, mas também por falta de formação e não
quis, nunca mais, viver dificuldades por via da falta de formação. Voltaram os
dias difíceis, as refeições parcas, os recursos escassos, mas, agora, Madalena
sabia que tudo isso tinha um fim à vista. O tempo de concluir o curso técnico
de contabilidade e administração em que acabar de matricular-se. Era um curso
de cinco anos, mas o sistema suíço permitia que pudesse fazer-se em menos caso
os estudantes se auto-propusessem para exames. Madalena traçou um plano para
concluir o curso em três anos. Era arrojado. Exigia um duplo sacrifício. Ter de
estudar mais horas e não poder trabalhar no pub. Era para isso, para suprir a
falta da verba que daí advinha, que o dinheiro da indemnização de Mário Só
serviria. O seu coração ficaria marcado para sempre pela desilusão, mas a sua
dignidade mantinha-se intacta. A sua batalha com a vida continuava. A primeira
vez que casara, a doença levara-lhe o príncipe e deixara-lhe um filho como
resgate desse amor. A segunda vez que casara, a violência trouxera-lhe uma
desilusão mas trouxera-lhe uma lição. Dependeria sempre e só de si. Seria,
enquanto vivesse, absolutamente livre. Nada valia a hipoteca do mais precioso
bem da Humanidade. Estava aberta a amar, sim, agora mais do que nunca, mas sem
preconceitos, sem papéis, sem formalidades, só com as pessoas que quisessem
amar tanto e tão livremente como ela. Qualquer homem que a quisesse, que
desejasse o seu amor, teria de respeitar a sua liberdade. O homem que não
compreendesse isto, não poderia amá-la.
Madalena não
voltará a casar. Amará de novo. Sempre com a mesma entrega que Kyle lhe
ensinara e sempre com a liberdade que Mário Só a levara a compreender como
imprescindível e intocável. É sinuosa, a vida, os caminhos que percorremos
pelas nossas próprias passadas levam-nos, por vezes, a lugares e pessoas
surpreendentes. O pensamento de Madalena em relação ao amor e a quem pudesse
merecê-lo havia-se centrado, naturalmente, em homens e, contudo, seria uma
mulher, a primeira pessoa a merecer esse amor. Marcelle Deschamps.
Foi na
faculdade. Madalena matriculou-se no regime noturno para poder trabalhar de dia
e, não obstante o cansaço de um dia de trabalho, tirava apontamentos que nem
uma louca. Tentava captar tudo o que era dito, registar todas as demonstrações,
pedia aos professores para colocarem os cálculos no quadro. Um dia, uma mulher
alta e bem constituída, longe de magra, mas não gorda, de cabelos loiros a
derramarem oiro sobre os ombros, tentou ajudar:
-Não precisas
correr atrás dos apontamentos dos professores, está tudo disponível na
reprografia.
-É gratuito?
-Não.
-Então tenho
de correr atrás dos apontamentos dos professores.
Mais palavras
não foram ditas porque não foram precisas. No dia seguinte, Marcelle
aproximou-se dela, estendeu-lhe com discrição um saco escuro, e disse:
-Toma, são os
deste semestre.
-Obrigada. És
muito generosa, mas não aceito nada de ninguém. É uma questão de dignidade.
-Parece mais
uma questão de orgulho.
-Admito que
possa parecer, mas não é essa a razão.
-A vida
tem-te tratado mal?
-Tem os seus
momentos, mas quando me castiga, exagera sempre na força.
-Faz assim,
guardas os apontamentos, estudas por eles e no próximo semestre oferece-los a
alguém…
-É a mesma
coisa.
-Não é não. A
capacidade de dar dignifica o que se recebe.
-E porquê
este gesto? O que queres de mim?
-Irra, a vida
tem-te tratado mesmo mal!
-Como disse,
teve os seus momentos…
-Olha à nossa
volta. O que vês?
-Homens.
-Exato. Uns
privilegiados. Nascem com uma coisa pendurada entre as pernas e estão
automaticamente em vantagem em todos os campos...
-E…
-E eu
pretendo equilibrar um pouco a balança. Considera que o meu motivo é
solidariedade feminina. Devemos ser um caso de estudo, duas mulheres a estudar
contabilidade na mesma faculdade…
-Com uma
condição.
-Qual?
-No próximo
semestre ajudas-me a escolher a beneficiária.
-Feito.
Foi o
suficiente para começarem a conversar com frequência. Entre as aulas, nos
trabalhos de grupo. Começaram por partilhar conhecimento e ideias e pistas de
solução para problemas, primeiro, e depois, tudo o que havia para conversar
entre duas mulheres, deve ter sido conversado por Madalena e Marcelle. Passaram
a encontrar-se também ao fim de semana para estudarem e fazerem trabalhos.
Marcelle conheceu as crianças e ajudava a cuidar delas nesses dois dias de
descanso que dão sentido ao resto da semana e rápido se apercebeu que Madalena
se deslocava de casa para a escola e da escola para casa caminhando um longo
troço do percurso e fazendo o restante de autocarro. Era uma forma de poupar.
Começou a levá-la, Conversamos no caminho, disse, e de qualquer forma não
preciso desviar-me. Foram trocando histórias. Ambas trabalhavam, ambas adoravam
a contabilidade e a gestão, ambas eram adeptas do rigor e acreditavam no
controlo dos números. Constituíam, uma para a outra, uma interlocutora
motivante e desafiante das suas próprias capacidades, uma interlocutora válida
que obrigava a outra a estar atenta e a não falhar. Tiveram ambas excelentes
notas no final do primeiro semestre. Numa noite fria, coberta pelo manto branco
da neve, em que levou Madalena a casa, estavam já à porta, ainda dentro do
carro, e Marcelle aconchegou-lhe as mãos entre as suas como que para
aquecê-las:
-Tens as mãos
frias.
-Em Portugal
diz-se que é amor todos os dias, mas deve haver algum problema com esse
provérbio…
-Ou não.
E puxou-a
para si e beijou-a nos lábios. Madalena afastou-se num impulso:
-Eu não sou…
-Não és
humana?
-Humana sou,
só que nunca…
-Nem eu. E
também não sou o que tu não és e também sou humana e será preciso outro
requisito, uma palavra que te certifique, um rótulo, para beijares quem amas?
-Acho que
não.
Aproximaram-se lentamente e encostaram os lábios rosados e sentiram o calor e a emoção que passava através deles. Não falaram do que acontecera. Permaneceram amigas verdadeiras e cúmplices mas não voltaram a beijar-se nem a trocar qualquer outra carícia do corpo. Era como se as suas almas se bastassem. Pelo menos, até encontrarem o homem que viria a pôr à prova todos os seus limites. Essa fantástica criatura que completaria o inseparável grupo dos três emes.
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