Crónicas de África - A Inigualável Gente de Moçambique

 

Crónicas de África - A Inigualável Gente de Moçambique


Só mesmo em Moçambique: regressámos há duas breves semanas e há já tanto para contar. Histórias com gente dentro.

Hoje, propositadamente, substituímos a habitual foto das "Crónicas de África" por essa que aí está e que retirámos da página Moz Maníacos no Facebook. Fizemo-lo porque estes sorrisos não os conhecemos em mais lado nenhum. São genuínos, transpiram a alegria verdadeira de quem não sabe ser de outra maneira. Há uma esperança no olhar de cada moçambicano que não sabemos de onde vem, mas que sabemos ser parte da identidade deste povo. E há também uma verdade transparente em cada pessoa, mesmo que essa verdade não nos agrade. Os moçambicanos são ímpares. Inigualáveis. São o que são, dizem o que têm a dizer, fazem o que têm a fazer, sempre com essa transparência expectável, sempre com um sorriso e uma alegria desconcertantes. Quatro breves apontamentos.

O Assalto.
Não vou entrar em pormenores. Não é isso que interessa. O que me interessa é a conclusão da história. Fui almoçar. Deixei uma pasta com um computador debaixo do banco do pendura. Claro que me tiraram a fechadura do carro, destrancaram a porta, abriram a mala, tiraram o computador, voltaram a fechar a mala, colocaram a fechadura no sítio e fecharam a porta. Quer dizer, toda a gente tem princípios, até um larápio de computadores. Se era para palmar o computador, não havia necessidade de estragar a viatura. Mai nada. Assim que chego a casa, estranho o facto da porta de trás estar a abrir mal, mas penso que se trata de uma avaria, a minha mulher sente a pasta mais leve, oh se estava(!), abre-a e computador viste-lo. Relaciono uma coisa com a outra, meto-me no carro, vou ao local onde tinha estacionado o carro para almoçar, chamo o arrumador a quem tinha pago para guardar o carro e nem lhe dou hipótese de argumentar, nem sequer lhe pergunto se sabe do computador, mostro-lhe o branco do olho e o ranger dos dentes e peço-lho de volta com a convicção firme de que ele o tinha e eu o queria. Resultou. Ele levou-me a quem o tinha que, perante argumentos similares, branco do olho e ranger de dentes, não hesitou em devolver-me o computador. A história acabaria aqui. Acontece que estamos em Moçambique, acontece que esta crónica teve uma introdução e é necessário que esta historieta seja coerente com ela. No momento em que me estende o computador embrulhado num saco preto, o larápio olha-me a medo e diz:
- Desculpa lá, boss.
Caros amigos e leitores, onde, em que outro lugar do mundo, é que um larápio devolve o produto do roubo e pede desculpa ao lesado?

Welcome Drink.
Um dos hipermercados a que vamos, também não há assim tantos, o Mica Premier, tem um bar com um longo balcão e umas mesinhas onde, por exemplo, se pode tomar o pequeno almoço. Uma vez por semana, ao sábado de manhã, costumo beber lá um café. Não é uma regra. É um hábito. Ora, com o café e a natural simpatia e abertura dos moçambicanos ajudando a isto o facto de, de vez em quando, eu vestir uma camisola do Benfica, os empregados foram metendo conversa, eu fui respondendo, criámos ali uma saudável picardia e umas palavras de saudação no início de cada fim de semana. Para mim, eram uma presença simpática a acordar-me o sábado. Para eles, pensei ser só mais um cliente. E até talvez seja, mas há algo especial nos moçambicanos: a forma generosa como reagem à simpatia. Um dia destes, penso que na sexta feira, passei por lá a beber um café antes de ir comprar não sei o quê para a despensa e eles vai de saírem para o lado de cá do balcão e distribuir demorados e apertados abraços, Então, porque nos abandonou tanto tempo? Estive de férias, fui ver o meu filho e a minha família. E encontrou tudo bem por lá? Graças a Deus. E vocês, estiveram bem por cá? E a conversa desenrolou-se e os abraços repetiram-se e eles renovaram as saudações e entretanto bebi o café e quando pedi para pagar eles disseram-me que pagavam eles, era uma Welcome Drink. Eu sei o preço do dinheiro para estas pessoas, por isso insisti para pagar até que um explicou. Nem pense nisso, hoje pagamos mesmo nós, é que pusemos um metical por dia de parte enquanto esteve fora para lhe poder pagar um café quando voltasse. E pronto. Lá segurei as emoções como pude, mas não há qualquer dúvida de que os meus companheiros de saudação matinal ao sábado e discussão dos lances mais duvidosos do futebol de fim de semana me cativaram, uma vez mais, com a sua alegria e a sua simpatia. Como eles se autoproclamam num cartaz, são mesmo capazes de um antendimento excepcionalmente super extraordinário! Mai nada!

É por isso que vale a pena!
Hoje vinha caminhando com a Paula, lado a lado, queimando umas calorias, como eu preciso, meu Deus, e cruzou-se um par de jovens connosco. Ouvimos, de passagem, a voz de um, em tom entusiasmado, revelando ao outro: Assim posso sonhar de duas maneiras! E pronto. Eis a súmula de tudo o que vale a pena nesta terra de oportunidades. Há desvantagens? Claro. Muitas. Mas há essa sensação preciosa que é a tangibilidade do sonho e da esperança. Sim, aqui pode-se sonhar. E, mais do que isso, podem concretizar-se sonhos. Os nossos e os de muita gente à nossa volta. É fundamentalmente por isso que esta terra vale pena!

O Outro Cão.
O nosso cão estava com o pelo demasiado grande. Tão grande que podiam advir-lhe uns incómodos. Ora, quando o mandei tosquiar e me perguntaram como queria o pelo, disse que queria o mais curto possível, nem mais, era o que faltava andar sempre a correr com o cão para o "cabeleireiro". E o veterinário cumpriu a promessa. Deixei-o lá e quando o fui buscar já o guarda estava aqui a rondar o prédio. E a conversa que aconteceu, assim que saí do carro com o cão foi, mais ou menos, assim:
- Eh patrão, tem outro cão?
- Não, C., é o mesmo.
- Não pode. O outro tem o cabelo comprido.
- Não é outro. É o mesmo. Só que lhe mandei cortar o pelo.
Ele olhou demoradamente o cão e rematou:
- Tem a certeza?
- Tenho.
- É que parece mesmo outro.
- Mas é mesmo o mesmo.
- OK.
E abriu um sorriso confiando que eu estava mesmo certo de ser o mesmo cão. Não fosse a vida pregar alguma partida e surpreendi-me a olhar para o cão a verificar os traços. Era o mesmo. Pelo menos responde pelo mesmo nome!

Cada dia, uma aventura, uma surpresa. Umas boas. Outras más. Cada dia, esta terra e, sobretudo, esta gente com que me cruzo, vai entrando na minha vida e nos planos dos meus gestos. É uma terra fantástica. Diferente, em tudo, de tudo o que conheço. É uma gente de sonho e esperança. Inigualável.

jpv

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