Motorcycle Chronicles - Multiple Choice

Multiple Choice


É noite. É uma imensa esplanada ao ar livre, num recinto fechado com um tapete de relva fresca cortada muito curtinha, há centenas de mesas redondas, todas com uma tolha branca caindo às pregas, as cadeiras estão forradas de tecido também branco e têm um enorme laçarote atrás. Cada mesa tem um pequeno candelabro e está iluminada só pela luz da vela indecisa. Há pratos e copos e talheres de prata. Ao lado das mesas, emerge do chão um varão em ferro e no topo dele uma espécie de telefonia onde pode regular-se o som do filme que se projeta no enorme ecrã colocado num dos topos do recinto. É uma espécie de cinema a céu aberto com refeições requintadas. Os empregados deslocam-se, elegantes, tentando não perturbar muito a visão dos clientes. Ainda assim, em boa verdade, os filmes são mais um pretexto. É bom jantar com uma companhia agradável ao som de um diálogo entre o Humphrey Bogart e a Lauren Bacall.

William Brody tinha duas paixões na vida. Motos e mulheres. Nem sempre por esta ordem, mas também acontecia. Enveredou pela carreira de Polícia Militar. Algo lhe agradava na ideia de regular a ação e o comportamento dos colegas assim como que garantindo uma postura incólume às forças da Defesa Nacional. Não fora essa, contudo, a única motivação para a escolha daquele ramo em particular das forças armadas. Digamos que poder ter um jipe Willys sempre à mão e uma Harley Davidson para uso quotidiano ajudaram muito na decisão. Tratava a moto como se fosse sua, manutenção diária, cuidados especiais com cada barulhinho fora do ronronar habitual, limpeza contínua e sem mácula, e, claro, patrulhava tranquilamente a longa marginal usufruindo do tempo e do calor húmido com odor de mar e aventuras. Por vezes, quando acontecia que o destino quisesse colocar-lhe uma pendura bonita no banco de trás ele impressionava-a com o ronco forte da moto e enquanto deslizava encostava-se para trás e dizia:
- Estás a ouvir este som?
- Estou.
- É poesia!
- Poesia?
- Sim. Poesia em duas rodas!

Gostava de convidá-las de forma inesperada e inusitada, como desafiando uma negação, gostava de conversar com elas, de levá-las a passear na Harley, de explorar-lhes o atrevimento e a intimidade, de amá-las. Quando as deixava em casa, após vê-las entrar porta dentro, seguras e satisfeitas, acendia um cigarro que fumava sentado na moto. Depois, imitava o Bogart, atirava o cigarro projetando-o com a força do dedo do meio disparado do apoio no polegar, soltava a última baforada, puxava pelo ronco da moto e deambulava pela cidade como se estivesse no paraíso.

Ela está de branco. Um vestidinho cintado, por cima do joelho, o cabelo apanhado num imenso novelo e uns óculos como os da Jacqueline Kennedy antes de acrescentar um nome. Ele olha-a embevecido, imaginando as palavras que vai dizer-lhe ao longo do jantar, o que ela vai responder, como a emoção vai crescer, onde a levará a passear. Veste umas calças de fazenda pretas, com pregas, uma camisa branca e um casaco do mesmo tecido das calças. Sem gravata. Elegante. Não demasiado formal.

Não houve qualquer espécie de empatia. Ele olhava-a, tentava chamá-la com o poder dos seus olhos brilhantes, iniciou diversas conversas, mudou de assunto, e recebeu em troca uns Sim, sim, Pois, pois, Hum, hum... Na tela, o Tyrone Power e o Errol Flynn pareciam conquistar-lhe todas as atenções. Desta vez, o cinema passara de pretexto a texto. O homem ultrapassado pelo espectro do homem, a magia da Harley esquecida pela luminescência movimentada da fita.
-Dás-me um minuto?
-Hum, hum...
-Volto já, com licença...

E saiu! Rolou rápido junto ao mar e tentou esquadrinhar o porquê daquela desatenção, daquela desfeita, nem um olhar, duas palavras atentas, uma mulher tão bonita que, quando convidada, parecera realmente entusiasmada com ele. Residia aí o engano. O entusiasmo era com o glamour do restaurante e da gigantesca tela espelhando "E o Sol Também Brilha". Era preciso fazer qualquer coisa, regressaria e pensaria em algo.

Ao reentrar no recinto passou pela bilheteira e reparou que já ninguém vendia bilhetes. A única pessoa que aí estava, arrumava os materiais. Contemplou-a. Uma mulata curvilínea de saia travada e casaco da mesma cor adamascada, um chapelinho na cabeça e um olhar terno e perdido. Foi lá.
-Boa noite.
-Boa noite. Bilhetes para hoje já não há...
-Eu já tenho um, obrigado. Na verdade tenho dois. Não que valha de muito...
-O quê? consigo também?
-Comigo também o quê?
-Foi trocado pelo Tyrone Power.
-Ou pelo outro.
-Acontece.
-Pois, pelos vistos. Eu sou mais conversa, uma cerveja, uns camarões...
-Pois, mas olhe que a concorrência é feroz!
-Já percebi. Só não percebo o que têm as pessoas na tela que não tenham na vida real...
-Têm sonhos!
-E não pode sonhar-se nos lábios de uma pessoa? Não pode sonhar-se no assento de uma Harley?
-Uiii... duas escolhas que eu preferiria...
-Tem bilhetes para amanhã?
-Eh, homem de fé... se acha que quer combater as sombras na tela...
-Naaa... mas posso sonhar à minha maneira.
-Tenho sim.
-Reserve-me uma mesa para duas pessoas, por favor, e venda-me dois bilhetes para o filme.
-Olhe que é o mesmo!
-Isso importa pouco. Empresta-me um envelope desses aí...
-Claro...

William Brody pagou, guardou o bilhete da reserva de mesa e um dos bilhetes de cinema no bolso do casaco, colocou o outro no envelope depois de rabiscar qualquer coisa nele, estendeu-o à mulata curvilínea que lho vendera e disse-lhe:
-Tome este envelope. É para si. Não o abra já, não precisa dizer-me nada agora. Abra-o amanhã e faça o que quiser. Boa noite e obrigado.
-Boa noite, sonhador.

O Tyrone Power e a Ava Gardner disputam a tela com Errol Flynn, uma garrafa de champanhe está na eminência de esvaziar-se, William Brody não tira os olhos da mulher que hoje o acompanha e lhe dá toda a atenção do mundo. As conversas desfiam-se, concordam, discordam, há música nas frases e luz no olhar, há uma mulata bonita e curvilínea exibindo as formas no vestido negro justo ao corpo de deusa e há um sonhador de fato de fazenda preta e pregas nas calças, sem gravata, e o mundo à volta é só uma moldura enevoada e imprecisa para os sentidos de ambos que se esgotam em ambos. Terminam o champanhe, decidem ir passear de moto na areia com o mar a salpicar as pernas, abandonam a tela, deixam as estrelas a falar sozinhas, levantam-se e saem para a sedução da vida.

Para trás uma mesa deserta com três bilhetes em cima. O da reserva e dois para o cinema. A mulher da noite anterior, enfastiada com o seu companheiro que não tirava os olhos da Ava Gardner, reparou naquele namoro, no cintilar daqueles olhos, no bailar daqueles lábios de promessas e quando os viu sair, a curiosidade inquietou-a. Levantou-se discretamente da sua mesa, recolheu os bilhetes da outra e voltou a sentar-se. Nada num, nada no outro e, por fim, algo escrito no último deles. Guardou-o, arrependida, na sua carteira, levou-o para casa, colou-o na folha do seu diário que marcava aquele dia quente e húmido de verão perdido no início da década de sessenta. O diário ainda existe, o bilhete ainda lá está colado, e tem escrito, com uma caligrafia irrepreensível e belíssima, a expressão "Não falte que se arrepende!" e, por baixo, a assinatura: Sonhador.
jpv
À grata e saudosa memória de meu pai,
Jaime Videira, também ele sonhador, à sua medida.

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