No Trilho dos Escritores Moçambicanos - Rui Nogar




No Trilho dos Escritores Moçambicanos

Eu não descobri o Rui Nogar. Foi ele que me encontrou. Um livro dele, mais precisamente. O único livro que Rui Nogar publicou: "Silêncio Escancarado". É um livro de poesia.

Estou a reagir a quente. Adorei cada poema. Cada um melhor que o outro. Uma dor constante, uma revolta interior, um balançar entre Portugal e Moçambique, um profundo conflito com o Cristianismo, um fervor e uma paixão constantes. Intrinsecamente político, contundente, de palavra veloz e dura. É moçambicano, sim, mas é também um poeta do mundo, universal.

Enfim, o melhor é que leiam e avaliem por vós. Afinal, o melhor que podemos fazer quando encontramos um escritor de que gostamos, é partilhá-lo.

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Do amor pelas pedras

se fores capaz
de amar uma pedra

se conseguires amar um pedra
dessas a que chamam calhaus
vulgaríssimas na sua textura
inconsequentes nas intenções
e que rolam no leito dos rios
desgastando-se até ao absurdo

uma pedra que julgamos inútil
sem outra beleza que não seja
a que só tu lhe podes emprestar

 se fores capaz de amar essa pedra
ama-a
acarinha o seu silêncio
responde ao seu mutismo
iletrado irreflexo
ama essa pedra
mesmo que te chamem louco
e que se riam na cara que hasteaste
no mastro da tua irreverência

e se for preciso
se os não loucos
forem longe longe demais
nas suas vaias
seus arremedos insultuosos
atira-lhes então a pedra
atira-lhes então a pedra
com toda a força do teu amor
com todo o poder transfigurador
das tuas mais íntimas convicções
ah com a violência que te possui
nos momentos em que és capaz
de amar uma simples pedra
que a tua sensibilidade vitalizou

atira-lhes essa pedra
atinge-os em cheio
e esmaga
esmaga as conveniências
que a burguesia libidinou
para que os outros
um dia saibam
que o absurdo apenas mora
onde jamais será pssível
florescer um amor qualquer

e tu
tu amarás essa vulgar pedra
quer eles queiram quer não
como se ama
apaixonadamente
a independência da nossa pátria
a liberdade de qualquer povo
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Nota Biográfica
 
Rui Nogar é o pseudónimo de Francisco Barreto, filho de emigrantes brancos oriundos de Goa, nascido em Lourenço Marques, a 2 de Fevereiro de 1932, e falecido em Lisboa, a 11 de Março de 1993. Após a morte do pai, abandonou os estudos secundários, a fim de prover ao sustento da família. Considerava-se um autodidacta, cuja formação devia tanto ao exemplo dos pais como ao de professores, exilados políticos portugueses, que o alertaram para as questões sociais e a necessidade de as problematizar no contexto colonial.
Viveu de perto desigualdades e injustiças, quer no subúrbio laurentino, que «conhecia como os seus dedos», quer no seu percurso profissional: trabalhou junto dos carregadores do cais e como praticante de escriturário nos Caminhos de Ferro de Moçambique, funções que só não foram mais humildes porque, como disse, «era impossível ser servente. Na altura só os havia de raça negra». Posteriormente, foi copywriter, contabilista e redactor em diversos títulos da imprensa, como a Tribuna ou O Brado Africano.
Com Craveirinha, participou nas actividades da Associação Africana, aí se notabilizando como declamador. Foi, aliás, na sequência de uma das sessões culturais dinamizadas naquela associação, em 1953, que a polícia política o deteve pela primeira vez. Os seus poemas mais antigos datam de 1954-55 e surgem em O Brado Africano e no Itinerário. Nessa época, reconhecia «ser mais provocador de vocações do que ser ele próprio vocacionado», mas acabou por assumir a escrita como um instrumento de expressão do seu «mundo interior», o que, nas suas palavras, significava tudo «aquilo que nós achávamos justo», tudo o que «pensávamos realmente não poder continuar a acontecer à nossa volta».

Mais informação sobre Rui Nogar, aqui:
http://www.revistarubra.org/?page_id=1263
 

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