Sermão de São Paulo às Acácias
Exórdio
Sabei, Acácias minhas vizinhas, que muito do mal que vem ao mundo vem por vós. Os homens pretendem pouco da vida e veio isto a ser assim por mister do Criador e duas outras ordens de razões. Uma é que sendo ignorantes, não sabem para mais e a outra, mais rebuscada razão, é que não sabem querer o que desejam. Iludem-se os ramos de vossos troncos e as folhas de vossos ramos e as flores de vossas folhas pensando que os homens são ambiciosos e lutam por ambição. Ambição seria querer estender esta vida para a outra, ambição seria querer conquistar o tempo eterno no pouco que lhes é dado nesta passagem. O que os homens são tem um nome desde os tempos mais antigos: gananciosos. A ganância de reter o tempo no aspeto do corpo que forçosamente irá a apodrecer, a ganância de conquistar a matéria que dentro de poucos sóis deixarão para trás, a ganância de se mostrarem superiores uns aos outros quando a mais crua das verdades é que nascem todos, independentemente de origens, etnias, credos ou posições, da mesma forma, vivem padecendo das mesmas enfermidades e morrem apodrecendo das mesmas maleitas. E nada levam consigo para o Além. Ou melhor, levam uma única e singular coisa: as ações que praticaram nesta passagem.
Argumentação
E perguntais, de frente para a minha janela, que tendes vós a ver com isto, genericamente e, mais grave, como podeis ser causadoras de tal enfermidade? É simples e, contudo, não o vedes. Não o vedes porque almejais o Céu, cresceis bordejando os andares dos edifícios e olhais unicamente para cima e para cima projetais vossa florida copa. E o que deixais para baixo, Acácias minhas vizinhas? Deixais a sombra. A doce sombra, proteção dos calores e das ardências que emanam do grande astro amarelo. Cresceis para o Céu e deixais para trás a semente do ócio, a raiz do conforto, o bálsamo para o sofrimento, quando é consabido que, o que o Homem mais precisa é de sofrer. Sofrer para aprender, sofrer para macerar o ânimo intempestivo e belicista, sofrer para aprender a resistir. O Homem precisa de Sol no lombo. Para sentir a agressividade e perceber que o seu semelhante a sofre também. Para que se não contente com a vossa sombra e a ofereça a um irmão, para que, quem sabe, venha a acolhê-lo na sua sombra ou a lutar por ele e com ele no direito por uma sombra igual. Escolhamos uma profissão ao acaso. Um homem anónimo. Desempenha-a o melhor que pode e sabe e tem a ambição de servir bem ou a ganância de prosperar sozinho e secar, à sua volta, todo o crescimento para sobressair, não entre árvores crescidas e frondosas, como é o vosso caso, mas entre um mato seco e rasteiro? É fácil perceber se o orienta a saudável ambição ou a nefasta ganância. Ponde a seu lado um outro homem. Um que ele não conhecesse, com quem não privasse e observai como o recebe, como reage à presença de um seu semelhante. É acolhedor ou hostil? Apoia-o ou mina-lhe o caminho? Saúda-o ou ignora-o? Auxilia-o ou larga-o à sua sorte? Incorpora-o ou expurga-o? E aqui entrais vós, Acácias minhas vizinhas, e vossa nefasta sombra. Se não tivessem o fresco da vossa sombra e da brisa que circula sob as vossas copas, estes homens estariam procurando abrigo juntos, uniriam forças, ver-se-iam forçados a um sofrimento comum em prol de um bem comungável. Acontece que a existência de sombra, por si só, sempre fará com que um deles a queira só para si com medo de perder o conforto e o outro venha procurar abrigar-se nela em busca do mesmo. O problema não é haver sombra, Acácias minhas vizinhas, o problema é a sombra pré-existir aos homens. O problema é ter de partilhar e gerir algo que já existia sem ser forçado a criá-lo desde a sua radicular fundação. O problema é agarrarem-se os homens às sombras como se as fossem levar consigo para o Além sendo irónico, Acácias minhas vizinhas, que os seus corpos partirão para uma sombra eterna e as suas almas, a merecerem-no, estarão em jardins onde delas não haverá falta.
Peroração
Abri os braços, Acácias minhas vizinhas, e deixai passar lancinantes e incomodativos raios dessa luz que nos alimenta e consome e tereis homens provando a insuficiente sombra e, na incapacidade de alargá-la sozinho, cada um por si, esforços hão de unir por abrigo comum. Não deis tudo, tão só mostrai. E aqueles que em conjunto sofrerem, será em conjunto que hão de conquistar e superar e encontrar a sombra que os proteja e a brisa que os acaricie. Vede quão fácil se assemelha a tarefa que tendes pela frente. Deixar passar a luz. A que permite ver e a que incomoda. Dizei a vossos troncos que subam, as vossas folhas que se dispersem, a vossas flores que sigam as folhas e não olheis para cima, antes para baixo, orientando a luz e a sombra de modo a que sempre haja desta mas nunca seja suficiente. É inquieto, o espírito dos homens, Acácias minhas vizinhas, porquanto não tendes outra solução que deixá-lo ocupar-se das suas buscas. Pois que busquem onde não há porque, em havendo, deixarão de buscar e concentrarão iníquos esforços na preservação do que lhes não pertence e do que não poderão conservar além de sua efémera existência. E fazei isto para todo o sempre pois que a humana natureza não é permeável à mudança.
In "Livro dos Homens Podres"
jpv