Crónicas de África - O Boss Africano


O Boss Africano

Maputo, 2 de novembro de 2012

Eu gosto desta terra e gosto destas gentes. Mesmo levando em consideração que ainda vivo dias abençoados pela aura da novidade e da descoberta, mesmo sabendo que dias virão em que as coisas correrão menos bem, a essência destas pessoas, as linhas com que se urde o quotidiano desta terra, agradam-me imenso. É por isso que a história que hoje vos trago se reporta a acontecimentos que comportaram riscos, mas que, só os vivendo, saberiam que não havia risco nenhum. Só pessoas. Só negócio. É a história do Boss Africano.

Como sempre, tudo começa com uma necessidade. Neste caso, uma necessidade de relativa importância. Ainda assim, como a estética e o conforto são alimentos da alma e do corpo como se de pão e água se tratasse, lá tentámos satisfazer a necessidade. Era preciso comprar uma cabeceira de uma cama. Sim, só a cabeceira. Metemo-nos no carro e fomos pela avenida 24 de julho abaixo e lá ao fundo, mesmo quase a terminar a avenida, tem-se à direita o mercado Malanga e à esquerda uma série de vendedores de mobílias em madeira maciça de diversas qualidades. A Paula ficou no carro e, assim que saí, abordaram-me dois tipos altos e espadaúdos:
-Como é que é boss?
-'Tá-se bem. Dá cá mais cinco.
E estendi-lhe a mão na posição "braço de ferro" para um cumprimento bem à macho. Ele, primeiro estranhou, mas de imediato mandou às malvas a cara séria, abriu um sorriso, apertou-me a mão e disse, Este boss é nice! O que é que precisas boss?
Resolvi aproveitar a simpatia, a boa onda, e abrir o jogo. Assim, em vez de fingir que queria armários para só depois avançar para as camas, ataquei logo:
-Como te chamas?
-D.
-Ok, D, preciso de uma cabeceira de cama para oferecer à minha dama.
-O boss é romântico.
-Sempre.
-Ó boss, e qual é a cama que te agrada mais?
-Não quero uma cama, quero só a cabeceira.
-Eh boss, então como é isso? Vais estragar uma cama para aproveitar só a cabeceira?
-Não. Vais-me fazer só a cabeceira.
E vai daí começou a mostrar-me cabeceiras e mais cabeceiras e às tantas perguntei-lhe o preço e ele disse uma exorbitância de preço que dava para comprar dez cabeceiras de cama e foi então que decidi testá-lo:
-Olha lá, então mas tu achas que eu não sei quanto custa a madeira e quantas horas de trabalho aí tens? Para negociarmos, não podes falar nem em metade, senão vou-me já embora, olha, dou-te...
E disse-lhe um quinto do valor que ele tinha pedido.
-Eh boss, é duro negociar contigo!
E eu voltei à carga:
-Olha, estás a ver o meu braço? É branco por fora mas por dentro é tão preto como o teu... Tu não vês que eu sou africano. Quando olhas para mim, em vez de veres uma carteira com notas, tens de ver um irmão africano..
-Eh Zacarias, anda cá que este boss é africano... e largou-se a rir. Depois deu-me outro aperto de mão e disse que me ia mostrar mais coisas e começou a entrar por casas e casinhas e casotas e casebres e já ia ele e eu e mais uns oito ou nove atrás de mim. Vi dúzias de camas, armários, cadeiras trabalhadas lindíssimas sempre tu cá tu lá com o meu amigo D e sem nunca ver a luz do dia de casa em casa. Quando reparei, estava de tal forma embrenhado no bairro que não sabia bem onde estava ainda que soubesse o caminho de volta. Parei, olhei para o cortejo que nos seguia e disse-lhe:
-Ouve lá, o que é que querem estes tipos todos? Não me digas que cada um deles me vai pagar uma 2M?
Desta vez a gargalhada foi geral. Lá vim com ele até à rua.
-Então boss, vais levar?
-Vou buscar a dama. Sabes, a minha dama é como a tua.
-Como assim?
-É ela que manda lá em casa!
Ele não se riu ao princípio mas os outros desataram a rir na cara dele e começaram todos a falar em changana.
-Eh boss, tu és duro. Traz lá a tua dama.
-E posso deixar ali o carro? Não mo desmontam todo?
-Eh boss aqui é tudo gente boa. O carro está controlado.
-Fixe!
E lá fomos os três com a romaria toda atrás. Demos uma voltinha mais pequena, mas suficiente para a Paula perceber por onde eu tinha andado. Foram sempre muito simpáticos e afáveis e tivemos sempre uma conversa muito aberta, muito nivelada e, sobretudo, muito bem disposta. Às tantas o D disse:
-Hei boss vou-te reiterar...
-Alto e para o baile, assim é que é falar. Olha que eu sou professor e tenho alunos que não demonstram essa propriedade vocabular...
-Sabes como é que é, boss, quem está no negócio tem de ter nível.
No fim, acabámos por não fazer negócio, mas isso não azedou a conversa nem um bocadinho. Terminámos por ali as conversações mas resolvemos trocar números de telefone e quando lhe dei o meu número, o D, enquanto o gravava disse com um sorriso a iluminar-lhe a cara, Vou escrever aqui boss africano!

À hora a que vos escrevo, ainda não fechámos negócio, mas também ainda não terminou o namoro. Temos andado a medir forças via sms e o preço está neste momento num plano em que, penso, as duas partes podem aceitar... a ver vamos se se encontra o ponto de equilíbrio entre o D e o boss africano. A visita pelos armazéns e oficinas e casas foi interessante. Para já, porque, claramente notei que os "boss" não costumam ir tão longe, depois, porque admirei o facto de isso lhes ter agradado. Eu não fui um intruso, fui uma pessoa que se interessou pelas coisas deles. E, claro, fui sempre um potencial comprador. Riscos? Talvez. Admito que sim. Mas nunca os senti. Pelo contrário, estive sempre muito tranquilo e à vontade. Acho mesmo que esse é o segredo que abre as portas... da alegria e da simpatia intrinsecamente moçambicana.

jpv

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