Mostrar mensagens com a etiqueta Crónicas de África. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Crónicas de África. Mostrar todas as mensagens

Crónicas de África - Coisas do Quotidiano (1)

Crónicas de África - Coisas do Quotidiano (1)

Maputo, 6 de abril de 2014

Acontecem-me, por vezes, alguns pormenores no dia-a-dia que penso dariam uma "Crónica de África", mas depois, olhando bem, não há assunto para tanto. Decidi, assim, colecioná-los e, em tendo três ou quatro, faço uma "Crónica de África" intitulada "Coisas do Quotidiano".

É este o caso. São alguns pormenores da interessante e insubstituível vida em África com Moçambique como pano de fundo o que torna tudo ainda mais interessante. Deixemo-nos de demoras e vamos a histórias.

Os Chinelos
Num fim-de-semana próximo, fomos dar um passeio de domingo à tarde. Daqueles em que se lava o carro no rio e se come frango assado na beira da estrada. Revisitámos Boane e a ponte onde o rio fornece a água para o Car-Wash mais ambientalista do Universo. Baldes de água atirados por cima dos carros e mãos laboriosas a lavá-los. Acontece que o caudal do rio tinha subido imenso e não foi possível lavar o carro com a mesma calma. Em vez disso, o Marco, os miúdos e mais uma carrada de pequenitos que já por ali estavam, resolveram atirar-se ao rio e atravessar a ponte... por baixo! Empurrados pela corrente forte, apanhavam boleia da água e já do outro lado da ponte, tinham de nadar para a margem. Exatamente na margem, presenciei um pormenor de partilha que me comoveu. As pessoas de Moçambique são boas. São especiais. São especialmente boas. Eram quatro meninas. De mãos dadas como é comum aqui. Ora, pelas minhas contas, quatro meninas dá oito pernas e oito pés. Mas só havia dois pares de chinelos, quatro unidades ao todo. E elas vinham chegando à margem do rio para ver a rapaziada nadar cada uma com um pé calçado e outro descalço. O sentido de posse cedeu espaço ao de partilha. É verdade que nenhuma estava completamente calçada, mas é verdade, também, que nenhuma estava completamente descalça!

O Ourives
A Paula queria uvas. Parei numa esquina, junto a um tchova carregado de fruta e com umas uvas lindas. E fui comprar. Quando regressava, reparei que, à sombra da acácia imensa, estava um ourives de rua, sentado num banco, com uma mesinha pequenina à frente, alicates e chaves daquelas pequeninas. E agradeci a Deus a providência de o ter colocado ali naquele dia. A verdade é que o meu relógio de pulso andava no pulso, mas parado. A pilha estava esgotada. Ora, o ourives tinha uma invejável fileirinha de pilhas de tamanhos diversos em cima da mesa.
- Tens pilha para este?
- Tenho, boss.
- Sabes mudar?
- Sei, boss.
- Muda lá.
Ele abriu o relógio em menos de três tempos. Tirou uma pilha de um pacotezinho que estava fechado a certificar que era nova e assim que a colocou o relógio começou a trabalhar. Depois vinha a última tarefa: fechar o relógio. Ele fez força até suar, rodou-o nas mãos diversas vezes, pediu a um amigo que estava encostado à árvore e os dois, em conjunto, apertaram o relógio à força toda, mas ele nada, nem sinais de fechar-se, a tampinha continuava solta. Eu fiquei à espera confiando que ele acabaria por conseguir e decidi não interferir com o trabalho dele, mas tive de o fazer quando o vi segurar a tampinha com muito cuidado e levar o relógio à boca. Ele ia fechá-lo à dentada! A visão do visor partido na boca dele não me agradou, como não me agradou ficar com o relógio aberto e por isso interrompi.
- Não, não, não. Não faças isso. Pára, pára... ouve lá, então tu abres o relógio e agora não és capaz de o fechar? Se não eras capaz de o fechar, não o tinhas aberto.
- Ó boss, mas a culpa não é minha!
- Ai não? Então é de quem?
- O teu relógio é que está a complicar!
- O meu relógio? Um relógio é só um relógio, não complica.
- Pois boss, mas esses aí, eu mudei e eles não complicaram. Este é que está a complicar.
- Então agora a culpa é do relógio?
- É!
Ouvi uma gargalhada à minha volta que queria dizer ficaste com o relógio aberto e ainda levas as culpas para casa. Resmunguei mais umas coisas com ele, trouxe o culpado para casa que está a cumprir castigo, todo esventrado, em cima da mesa de cabeceira. Com Deus, ajusto contas mais tarde!

A Foto
Há umas semanas para cá, andamos à procura de casa. Estamos bem instalados e gostamos da zona, a casa é muito boa e o senhorio fantástico. Mas falta um quintalinho. Coisas de quem não sabe estar bem. Então, compramos o jornal, espreitamos os anúncios, vamos à Internet, vemos a oferta e, ocasionalmente, telefonamos a um agente e vamos ver uma casa. Nos meus contactos, já tenho alguns vinte agentes e já devo ter visitado dois terços das casas disponíveis em Maputo. Começo a conhecer bem o mercado e as oscilações de preços. Mas há sempre espaço para uma surpresa. Ou não estivéssemos em África onde todos os padrões e conceitos mudam.
Vimos uma casa num anúncio na Internet. A foto mostrava uma casinha muito arranjadinha, com um quintalinho simpático sendo o único senão o aparente estado degradado do telhado. O anúncio era do próprio dia. Decidi telefonar e a conversa foi mais ou menos assim:
- Bom dia, como está?
- Estou bem e você do seu lado aí?
- Estou bem, Graças a Deus. Olhe, este anúncio duma geminada tipo 3 no bairro central é seu?
- É.
- E a casa precisa de obras ou está pronta a entrar?
- Pronta a entrar. Não precisa obras nenhumas, só as que forem do gosto do cliente.
- Pois, correto, mas olhe que aqui na foto o telhado parece em mau estado.
- Ahhh... essa foto não é da casa!
- Como? Então essa foto aqui não é da casa que está no anúncio?
- Não.
- Então para que é que colocou aqui essa foto?
- Para ilustrar.
- Para ilustrar? Mas a foto não é da casa!
- Mas é parecida...
- Ah, é uma casa lá perto?
- Não. Eu não sei que casa é essa, eu tirei a foto da Internet!
E pronto... fiquei... a pensar que o conceito de anunciar é diferente, tal como o conceito de ilustrar. Não. Não fui ver a casa. Quando as coisas começam assim, é melhor não dar corda ao destino!

O Guarda
Temos um guarda novo no prédio. Um dos outros dois foi despedido e havia que substitui-lo. Quando me apresentaram o A. fiquei surpreendido. Foi por causa de homens assim, que se inventaram expressões como "grande caparro" ou "cabedal do caraças". O moço, que não tem uma pinga de maldade em todo aquele corpo, cresce por aí acima até lá para o metro e noventa e tem uma envergadura que há de ser para aí de metro e meio de ombro a ombro. É moço aí para os seus cem quilitos com a particularidade de se perceber que não há ali uma gordurinha, sequer. Aquilo hão ser músculos rijinhos como o ferro. Apresentaram-mo, cumprimentei-o, desejei-lhe bom trabalho e subi para cima que para baixo não havia caminho. Agarrei na trela do cão, um cocker spaniel minúsculo, a rondar os dez quilos, e voltei a descer para a caminhada de fim de tarde como sempre acontece. Quando o meu pequeno cocker se cruzou com o armário que agora nos guarda as noites, ele, o guarda, soltou um grito, Ehhh, e deu uma corridinha de três ou quatro passos rua acima. Depois, fitou o cão e riu-se. Eu sorri, enchi o peito de ar e pensei, É melhor que os ladrões não venham com com cokers!

E pronto, amigo leitor, por hoje é tudo. Daqui, desta África moçambicana que nos surpreende a cada esquina. Eu ficava mais um bocadinho à conversa, mas perdi a noção do tempo, nem sei que horas são!

jpv

Crónicas de África - Moçambicanização


Crónicas de África - Moçambicanização

Maputo, 22 de março de 2014.


Caro leitor, hoje, por razões que perceberás mais adiante, vou tratar-te por tu. Não leves a mal, não é falta de respeito. É moçambicanização.

Um dia destes, utilizei uma expressão tipicamente moçambicana no discurso e a pessoa que estava comigo comentou:
- Estás mesmo queimado!
Lembrei-me, então, que há por aqui duas expressões para quem está integrado e adaptado. Uma é "estar queimado" e a outra é "estar cafrealizado". Honestamente, parece-me que há certo tom pejorativo nas expressões, mas nunca tirei isso a limpo. Se estiver a ferir alguma suscetibilidade, desde já, peço desculpa. É pura ignorância. O facto de me dizerem que estava queimado agradou-me. Gosto desta terra, gosto de sentir-me integrado nela. Mesmo que isso implique mudanças. Afinal de contas, as pessoas mudam. Em África, mesmo as mais graníticas, acabam por mudar. As exigências da adaptabilidade falam mais alto.

Alguns dos sinais de mudança, alguns traços de moçambicanização, têm a sua graça, outros são peculiares e todos juntos contribuem para que, sendo os mesmos, sejamos outros.

Ya!
Uma das primeiras coisas a mudar é o registo discursivo, nomeadamente, a oralidade. O tom da voz, o bailado das frases e, claro, as expressões. Ya é a primeira delas. Em vez de sim ou outras expressões de afirmação e anuência, o Ya surge a marcar o início do processo de moçambicanização. Estava em Moçambique há três meses quando, numa reunião, alguém me disse:
- Já apanhaste o Ya.
Depois, lá vem o nice e, se um dia disseres que tens de ir para casa jobar porque ainda não corrigiste os testes todos, aí, estás para lá de moçambicanizado!

O Andar
Deixa de ser enérgico e determinado, mesmo que mantenha alguma energia e determinação. Por aqui, a vida tem ritmos diferentes. Tem compassos e esperas próprios e o andar das pessoas transforma-se numa passada mais arrastada, mais desleixada sem que haja nisso desleixo. É como se as pernas não fossem mas se deixassem ir.

Coleman
Cá não se diz arca frigorífica. Diz-se Coleman que é uma marca delas. A mais popular. São enormes. E, na sua maioria, os vendedores de bebidas frescas de beira da estrada usam Coleman. Se o teu porta-bagagens anda a passear uma Coleman sem razão aparente, enfim, por duas razões, pelo sim e pelo não, então estás mesmo a integrar-te. Eu acho que ninguém sai de Maputo para andar 50km sem levar logo uma azulinha consigo. Devidamente recheada.

O Carro
Não é impossível viver sem carro próprio em Maputo, mas é muito difícil. Assim, amigo leitor, se pensas em emigrar para Maputo, a compra de um carro em segunda mão deve estar nos planos. Os carros aqui são em segunda mão, japoneses, automáticos, a gasolina e, se puderes, 4x4. Não sei como é que leste a expressão 4x4. Provavelmente leste quatro por quatro. Tá maaal. Toda a gente sabe que se diz four by four que é como quem diz for bai for. Ora experimenta dizer isso muito rápido e obtens um vocábulo interessante. O típico fóbáfó!
Há tiques de moçambicanização relacionados com o carro e a condução. Deves desconfiar que estás a ficar moçambicanizado quando notares que:
      - Andas com um objeto contundente junto aos bancos da frente. Já vi homens e senhoras, não é uma questão de género, portanto, com martelos, catanas, tacos de beisebol, de golf, bastões, enfim, toda uma parafernália de objetos da categoria "para o que der e vier".
      - Trazes o porta-bagagens do carro todo artilhado. Compressor, chaves de diversos tipos e utilidades, jumpers, lanternas, facas do mato, latas de spray anti-furo, um cabo de aço, uma pá, uma tira de reboque e um jerrican para combustível. Nada disto é excessivo. É tudo normal. E muito moçambicano.
      - Atestas o depósito assim que chega a meio. Aliás, fazes de atestar o depósito um hábito regular e tens a preocupação de não correr o risco dele baixar a menos de meio não vá o diabo tecê-las? Pronto, estás moçambicanizado!
      - Foste ao Estrela e mandaste gravar a matrícula nos retrovisores e nas óticas dos faróis? Mocambicanizado! E o mais engraçado é que, quando fores a Nelspruit e estacionares o teu carro, vais sentir-te diferente. O teu carro é o único com rebites nos piscas e matrícula gravada nos retrovisores. Quer dizer, o único não será...
      - Outro aspeto interessante no processo de aculturação a Moçambique e a Maputo, em particular, é a forma como ages e reages no trânsito. A perspetiva muda. Na verdade, mudam duas perspetivas. A primeira é a do relacionamento com os outros condutores. Por aqui, apesar do trânsito caótico, os condutores não espetam o dedo do meio no ar, não ralham e raramente buzinam. A buzina é muito usada mas é para pequenos avisos, para anunciar a passagem. Raramente para ralhar. O dedo do meio espetado no ar dá lugar a um OK de polegar esticado, a um aceno, um sorriso, um vá lá, passa lá. A outra perspetiva que muda é a daquilo que fazes e porque o fazes. Também há regras de trânsito, claro, também se respeitam, obviamente, mas só se não estorvarem mais do que outra regra qualquer. Assim, se deres contigo a conduzir por cima do passeio porque na estrada há um buraco com 60cm de profundidade e 2,5m de largo, se deres contigo a passar um semáforo vermelho porque não vem lá ninguém e tens uma chusma de gente atrás de ti, se deres contigo a inventar uma faixa de rodagem que não existia e tu segues por ela só porque há espaço, se deres contigo a mergulhar em lagos de lama só porque decidiste fazer um atalho, se deres contigo a percorrer quinhentos metros de estrada em contra-mão para não ires à volta e teres de percorrer meia cidade, então, amigo leitor, põe a mão na consciência e pensa lá se não serás mais moçambicano do que outra coisa qualquer. No trânsito, em Maputo, há uma regra de ouro que se sobrepõe a todas as outras, chama-se "desempatar" e para desempatar, às vezes, é preciso usar uma ferramenta, chama-se desenrascar! Estorvar é que não vale.

Comprar na Rua
A vida, em Portugal, como se diz agora, é muito indoor. Passamos muito tempo dentro de casa e, quando saímos para o exterior, é para dentro de outros interiores! Centros comerciais, cinemas, lojas diversas, igrejas, casa dos amigos. Todo o comércio é tendencialmente feito indoor. Um dos sinais de moçambicanização é começares a fazer compras na rua. Numa bancada, a um tipo que passa, enquanto estás parado num semáforo. Compram-se legumes, frutas, peixe, amendoim, cajú, o jornal, escovas limpa pára-brisas, crédito para o telefone, filmes, e um sem número de utilidades. Basta um assobio, um aceno, um alô, e tens fornecedor em segundos. Nos primeiros tempos, estranhas um pouco, depois aderes, depois selecionas e compras só determinados produtos a determinados vendedores. Estabeleces uma relação de confiança. Eu, moçambicano me confesso, compro laranjas sempre no mesmo semáforo, o jornal na mesma esquina, as escovas para o limpa pára-brisas do carro sempre no mesmo cruzamento. Para lá de adaptado!

Dinheiro no Bolso
Se dás contigo a levar a mão ao bolso e a tirar umas notas para fazer um qualquer pagamento em vez de sacares do cartão multibanco, isso é... costume moçambicano. O dinheiro, dinheiro, aquele de papel, está mais presente nas nossas vidas do que em Portugal. Há caixas automáticas por todo o lado, todas as lojas têm máquinas de pagamento eletrónico, mas a matriz de vida é diferente. trazer dinheiro é um hábito que decorre de uma necessidade. Ficas munido para imprevistos e os imprevistos, aqui, acontecem. Além disso, o facto de haver muito comércio de rua ajuda ao hábito.

Um Fim-de-Semana em Nelspruit
É sábado. acabaste de almoçar um bom bife, à tua volta há corredores largos e cintilantes, lojas que rebrilham o que têm lá dentro e têm tudo lá dentro, as pessoas passeiam-se em ritmo de lazer e os preços estão em rands! Nelspruit é um gigantesco subúrbio de Maputo. Fica apenas a duzentos quilómetros de distância, duas horas de caminho mais o tempo necessário para passar a fronteira de Ressano Garcia. Já passei os dois lados da fronteira em catorze minutos e já os passei em três longas horas. Depende dos dias e das horas. Muitos moçambicanos trabalham em Nelspruit, muitos outros vão-se lá abastecer de tudo o que necessitam para revender em Moçambique, outros só para abastecerem a despensa e, claro, nós, emigrantes, juntamente com muitos outros moçambicanos, vemos Nelspruit como uma fugida de fim-de-semana, um intervalo na confusão da grande cidade. O trânsito de pessoas e bens entre Maputo e Nelspruit é imenso e uma visita à RSA é também um traço de moçambicanidade. Em jeito de curiosidade, importa dizer que esta cidade criou-se, desenvolveu-se e floresceu após a independência de Moçambique. Antes disso, era meia dúzia de casas num descampado. Hoje é uma cidade enorme, repleta de recursos e equipamentos e muito desenvolvida. Além disso, situa-se na região de Mpumalanga onde fica a zona turística de Panorama que vale muito a pena visitar. Ou seja, se emigraste para Maputo e estás em Nelspruit a falar inglês num centro comercial, a puxar por rands e a olhar para um tipo loiro com 2,10m de altura e 150kg de peso, se entraste num pronto-a-vestir à procura de uma camisa de tamanho L e o S está-te grande, então estás a moçambicanizar.

Coca-Cola
Estava há poucos dias em Maputo quando uma colega moçambicana me disse, Sabes que nos chamam [aos moçambicanos] os Coca-Colas! Ela estava a tomar o pequeno-almoço que consistia numa sandes e... uma Coca-Cola!

Quando cheguei, estranhei não só a oferta massiva de Coca-Cola, que se vende em todo o lado, às vezes, mesmo onde não se vende água, como também o facto de a Coca-Cola ser a bebida engarrafada mais barata de Moçambique, mesmo mais do que a água! De resto, para que o preço não possa ser adulterado, é tabelado e vem gravado nas cápsulas das garrafas. Uma Coca-Cola custa doze meticais, ou seja, qualquer coisa como vinte e cinco cêntimos de euro. Com uma oferta tão vasta do mais popular refresco do país, não admira que quem vive em Moçambique acabe por aderir. Bebe-se Coca-Cola quando está muito calor, bebe-se ao almoço, ao jantar, ao lanche, à noitinha e, como já se disse, é comum beber-se ao pequeno-almoço. Eu cá tenho a teoria de que a Coca-Cola daqui é melhor do que no resto do mundo. Quando cheguei, não gostava de Coca-Cola, não bebia uma garrafa há anos, e hoje consumo com alguma regularidade. E não é que é bom?! Sim, se deres contigo a atravessar a estrada para ires comprar uma Coca-Cola na berma ou, simplesmente, a abrir a janela do carro para comprares uma, estás a moçambicanizar!

Polícia
Se vieres para Maputo, amigo leitor, hás de reparar que há muita polícia na cidade, muitos seguranças, muitas armas. Com o tempo habituas-te. No início, sensivelmente nos primeiros seis meses, mandam-te parar inúmeras vezes e verificam tudo o que houver para verificar. Documentos, chapas de matrícula, pneus, vidros fumados, os selos dos impostos, etc, etc, etc... Depois, assim de reprente e sem razão aparente, deixam de te mandar parar. Quer dizer, não é um "deixam" definitivo, continuam a mandar-te parar uma vez por outra, mas sem aquela frequência inicial e sem aquele frenesim inspetivo dos primeiros tempos. Não sei como é que eles sabem que já não somos recentes, talvez pela matrícula, talvez pelo aspeto, mas sei que, quando a polícia deixa de nos mandar parar por tudo e por nada, isso quer dizer que estamos no bom caminho da integração.

Além destas características ainda há certo enxovalho de roupas, o cantado das frases com uma ou outra palavra em changana que vais aprendendo, as coisas importantes com que deixas de te importar, mas essas que aí ficam registadas, não sendo exclusivas, são bons sinais de moçambicanização. Podes resistir, mas, caso permaneças no país, o mais certo é começares a evidenciar alguns destes sinais, dos quais faz parte falar na segunda pessoa do singular. Não só quando nos dirigimos a outra pessoa. Sempre! Mesmo quando estás a dar um exemplo. Não se diz imaginemos que ou imagine-se que, diz-se logo imagina que...

E pronto, amigo leitor, vai lá à tua vida que eu tenho ali uma Coca-Cola à espera. Fresquinha? Ya, bem nice!
jpv

Crónicas de África - Diferenças Profundas


Crónicas de África - Diferenças Profundas

Maputo, 15 de março de 2014


Quando se vem viver para África, Moçambique, no meu caso, muitas são as diferenças que se encontram e dessas diferenças fui dando notícia na minha escrita de estranhamento e pasmo a que dei o pouco original nome de "Crónicas de África".

Há, mesmo, o hábito, qual desporto instituído, de comparar a vida, a nova vida, moçambicana, com a vida, a velha vida, portuguesa. E não há mal nenhum nisso. São só as pessoas a certificarem-se de que o estranhamento é comum e, como tal, está tudo bem ainda que diferente.

Ao cabo de um ano e meio de vida em Maputo, noto que os ritmos se vão interiorizando e as diferenças esbatendo porque me acomodo àquilo que inicialmente tanto estranhamento causou. Chama-se a isso adaptação.

Há, contudo, aspetos que continuo a estranhar e já sei que são diferentes e já toda a gente sabe que são diferentes e, mesmo assim, sempre que os presencio, sempre que me cruzo com eles, sinto aquela indefinida e familiar sensação de Isto não era assim. É desses aspetos que venho falar-vos. São as diferenças profundas.

As Cores do Verão
O meu verão português e europeu foi sempre seco e amarelo. As searas, as ervas secas, a vegetação moribunda, eram a paisagem. E, onde antes houvera água, deixara de a haver e a paisagem secara. Em África, o Verão é verdejante e húmido. Caem chuvadas torrenciais como se fosse inverno e essa água pródiga, abundante e ruidosa, de pingos largos e pesados, seca em minutos e dá lugar ao mesmo sol que lá estava há pouco. Ainda hoje estranho o facto de estarem trinta e muitos graus, um calor arrasador, e a paisagem ser verdejante e a chuva cair invernia.

A Temperatura da Água
Em Portugal, há duas razões por que evitamos apanhar uma chuvada no lombo. Ficarmos molhados e o gelo da água a incomodar a pele. Aqui, a água, qualquer água exceto a do frigorífico, é quente. Sempre que tenho de cruzar uma chuvada, encolho-me, como toda a gente faz, por causa do friozinho da água, e depois surpreendo-me. A água da chuva é tépida e, como tal, não é agressiva ao toque. Por outro lado, é tanta e tão cerrada que, tentar escapar a uma chuvada é uma tolice. Ao cabo de duas passadas, estamos molhados até às cuecas! Da mesma forma, quando olhamos as águas cristalinas de um rio, ou intensamente azuis do mar, pesamos duas vezes antes de entrar porque a água sempre é fria. Engano nosso. Isso é a realidade portuguesa. Por aqui, os rios e o mar não parecem vir de uma nascente, mas antes de uma longínqua caldeira e ainda trazem parte do calor originário. Molhar os pés é sempre uma surpresa agradável.

Os Rios Correm ao Contrário
Esta diferença pode parecer-vos esquisita. A mais esquisita. Acontece que estranho com frequência a direção dos rios. Eu bem sei que os rios correm todos, ou quase todos, para o mar, mas, ainda assim, o mar aqui está do outro lado! Eu explico... Quando vivemos em Portugal, se vamos para Norte, o mar fica à nossa esquerda, logo, os rios surgem da direita, e se vamos para Sul, o mar fica à direita, logo, os rios surgem da esquerda. Ora, como o mar, aqui, está do lado errado, os rios correm ao contrário. Quando vamos para Norte, o mar fica à nossa direita, logo, os rios surgem da esquerda, e se vamos para Sul, o mar fica à nossa esquerda, logo, os rios surgem da direita. Assim, quando vou a conduzir e me aparece um rio do lado contrário, fico sempre com a sensação de que vou a subir para baixo ou a descer para cima! Confuso? Naaa... Geografia pura!

A Rota do Sol
Que o sol nasce no mar e se põe em terra, habituamo-nos rapidamente. Estranha-se, mas entranha-se. O que custa mais a entranhar é por onde é que ele passa! É comum, andar de cabeça no ar à procura do sol. Em Portugal, até de olhos fechados sei de onde vem e para onde ele vai. Aqui, não consigo achá-lo e tenho esta sensação esquisita de que em Portugal ele me passa pela frente e em Moçambique me passa por trás! O Marco diz que aqui o sol faz um arco não sei das quantas. Sei lá se é um arco. Sei que ele nunca está onde era suposto estar, mesmo já incluindo o facto de andar sempre em marcha-atrás!

A Lei da Oferta e da Procura
Esta é das diferenças mais interessantes em termos culturais. E estranha-se sempre. A verdade é que nos habituámos, em Portugal, ao comodismo de termos o que pedimos e até a exigir o que queremos. Ou seja, de acordo com as regras do mercado, na lei da oferta e da procura, manda a procura. E isso gera expectabilidade e conforto. Pois os livros das leis do mercado, em Moçambique, têm de ser reescritos porquanto, na lei da oferta e da procura, manda a oferta!  Quero com isto dizer que, aqui, os consumidores também procuram, mas só compram o que procuram, se houver. Se não houver compram outra coisa! Não vale a pena habituarmo-nos a um certo sumo, uma determinada compota, um chocolate específico, um creme de barbear ou uma carne e a razão é simples, o facto de estar hoje no supermercado e ter sido consumido, não quer dizer que o produto vá ser reposto. Pode ser. Pode não ser. Há múltiplos fatores que fazem oscilar a fiabilidade da oferta, logo, a expectabilidade e o conforto só existem na seguinte medida: se hoje há o que querias, compra! Amanhã pode não haver, podem mesmo passar-se meses sem que seja reposto. Até já me aconteceu um episódio engraçado. Fui comprar um sumo de maçã ao supermercado e pedi sumo de maçã da marca xis a um funcionário porque não estava a encontrá-lo nas estantes. Ele apontou os sumos de maçã e disse, Está aí! Eu olhei, não vi o sumo e disse-lhe que não estava. Ele voltou a apontar e esclareceu com ar admirado, Quer sumo de maçã? Está aí sumo de maçã! E sorriu. Eu também e trouxe de outra marca.

Os Supermercados Mandam Menos
Uma coisa a que paulatinamente nos fomos habituando em Portugal e depois deixámos de estranhar é a ditadura dos supermercados em relação ao calendário. Em Portugal, são as grandes superfícies que decidem quando termina o verão e começa o regresso às aulas, quando chega o Natal, quando vem a Páscoa, o verão e depois as aulas outra vez. Aqui não. Primeiro, porque há muito poucos hipermercados. Depois, porque eles não têm uma presença tão vincada na vida das pessoas como em Portugal. Verdade, verdadinha, a festa aqui faz-se quando os moçambicanos querem e normalmente eles querem de oito em oito dias porque o fim-de-semana é um oásis. Além disso, datas já muito esbatidas em Portugal, são aqui motivo de celebração entusiasta. O dia da criança, dos namorados, da mulher e todos os feriados nacionais. As pessoas festejam o que querem, quando querem, quer os supermercados queiram, quer não.

Religião Vigente
Em Portugal, o Estado é laico e, não obstante a liberdade na escolha da religião que cada um quer professar, há, por razões culturais, uma evidente predominância da religião Católica. Isso nota-se na organização do calendário, nas celebrações, no discurso oficial e institucional. Em Moçambique nota-se que não se nota isso. Não sinto que haja uma religião vigente, não sinto que haja uma e as outras. Sinto que há diversas comunidades religiosas, todas muito vincadas, todas muito fortes, todas em natural e quase sempre harmoniosa cohabitação.

Caos e Boa Disposição
Nos últimos vinte meses, não me lembro de ter visto um moçambicano zangado, exaltado. Eles devem zangar-se como as outras pessoas todas, mas têm uma latente e constante boa disposição. E porque é que eu estranho? Sei lá, porque há situações do quotidiano, no trânsito, no supermercado, no banco, na polícia que seriam potencialmente de grande discussão em Portugal, dedo em riste, voz alterada, palavrão célere, e aqui vejo tudo isso ser tratado com muita contemplação e com muita paciência e sempre com um desconcertante sorriso. Certa altura, a minha mulher estava a dar um raspanete a um aluno e ele continuava a sorrir, vai daí ela disse-lhe que ele devia levar aquilo a sério e ele respondeu com o mesmo sorriso nos lábios, Eu levo a sério, setôra, eu sou mesmo assim. E era! E é! Ele e os moçambicanos quase todos. De contagiante boa disposição. Já não tão contagiante, mas admirável, é o caos de Maputo. O caos no trânsito, na ordenação do parque habitacional, nos mercados, nos transportes, na forma como as pessoas se deslocam e organizam. Em Maputo, tudo parece desorganizado e, contudo, a vida faz-se, acontece e desenrola-se com naturalidade. Não há falta de ordem. Há outra ordem. E nós aprendemos a viver com ela, mas estranhamos sempre.

Um ano e meio! De diferenças. De adaptação. De ritmos que mudam. De perspetivas que se alteram. Foi tão pouco tempo e parecem já décadas. Tudo é intenso em África. Mas não é uma intensidade frenética. É uma intensidade profunda e tranquila que nos transforma por dentro. Não sei se alguma vez mais me vou embora. Estou a moçambicanizar-me. Há sinais evidentes disso e serão esses sinais o motivo da próxima crónica...

jpv

Crónicas de África: Car Wash Made By Boane



Car Wash Made By Boane

Maputo, 2 de março de 2014


O interessante de se combinar um almoço com o Marco e a Sandrine é que sabemos onde vamos almoçar, mas nunca sabemos onde vamos parar. Normalmente, deparamo-nos com pequenas e singelas surpresas que, para nós, têm a vantagem de ficarmos a conhecer melhor as gentes de Moçambique, os caminhos e as povoações por onde, habitualmente, não passam muitas viaturas.

Como quase tudo por aqui, a ideia foi espontânea e a coincidência também. Tínhamos acabado de combinar os dois, eu e a minha senhora, dar um passeio pela Matola, depois de almoço. Só para ir conhecer melhor. Nesse instante, toca o telefone e, vá se lá perceber as voltas da vida, era o Marco a perguntar se não queríamos ir almoçar com eles à Matola! Pizza no Mimmos, em pleno jardim, resulta sempre agradável. Depois, uma tarte de frutas na Pastelaria Princesa e estávamos prontos para regressar a casa. Mas o Marco é naturalmente irrequieto e a pergunta veio, Vamos dar uma volta? Levamos só um carro... Passear é sempre bom. Tínhamos estado a teimar, durante o almoço, eu dizia que a Matola tinha porto, ele dizia que não, até lhe mostrei no telemóvel. Começámos por aí. Visitámos as salinas, o tal do porto, e eu a levar com banho de realidade, e começámos depois um percurso maioritariamente por estradas de terra que nos haveria de levar até Boane. Gentes tranquilas com gestos de sempre, umas tranças que se fazem, umas roupas que se estendem, umas casas humildes e umas pessoas simples e sorridentes a marcar a tarde. Uns miúdos em correria atrás de uma bola, uns pássaros azuis, uns ritmos sossegados lá longe da cidade onde não chegam ruídos agressivos nem a evolução plastificada dos tempos, mas onde há paz.

Percorremos ao contrário, em contra-corrente, o rio Matola, os açudes, as curvas do curso de água, a vegetação verdejante, os pescadores de domingo e as marcas do tempo em comportas que já lá não estão. Em Belo Horizonte, vimos as condutas que levam a água para a grande cidade. Até fizeram uma ponte para a água passar por cima da água... do rio. Águas cruzadas. E um miúdo de dez anos, corpo franzino e olhar vivo, subia à ponte e saltava para o rio, os outro riam-se e pegavam com ele, Eu conheço aí um crocodilo, ele me disse que vai te pegar. E o miúdo nadava para a margem, corria para a ponte, abria os braços e voava. Nessa tarde, não vi ninguém mais livre do que ele. Algures no mato, abriu-se um campo de bola, jogava o Porto contra o Barcelona, e havia outros a correr atrás da bola, sem camisola, uns de chinelos, outros de chuteiras mais largas que o pé e outros só com o pé. O remate foi frouxo. Saiu ao lado. Em Boane, o Marco tomou uma estrada para a esquerda e quando me chamou a atenção para a paisagem, eu arrepiei. Claro que conhecia. Claro que identificava. Claro. Só faltava o Leonardo Di Caprio.
- Viste o Blood Diamond?
- Sim, várias vezes, é um filme soberbo.
- Olha ali!
E apontou para uma elevação montanhosa com uma torre de vigia esquisita porque tem quatro ferros ao alto, um em cada canto e, a seus pés, uma enorme e antiga ponte de ferro...
- Ali é onde ele foge...
- Sim, grande parte do filme foi rodado em Moçambique.
É fácil reconhecer e identificar os espaços porque são muito marcantes. 

Mais à frente uma pequena ponte a atravessar um curso de água. Reparámos que não havia carros em cima da ponte, mas que estavam vários debaixo dela, dentro do rio. Coisas de África. A água corre límpida e forte, mas não tem mais do que um palmo de altura, as pessoas aproveitam a circunstância do piso ser transitável, circulam junto aos alicerces da ponte, param os carros e lavam-nos com água corrente. Vêm meninos a correr oferecer os seus serviços de lavadores, estabelece-se o preço da empreitada, mas a água tem vida, tem frescura, limpa o corpo e a alma e nem um de nós ficou dentro do carro. O Marco, a Sandrine, nós, os miúdos, toda a gente descalça a refrescar a mente e a ajudar os trabalhadores e a água a correr, viva, e a salpicar as roupas. A Natureza dá, o Homem aproveita. O Homem e os meninos! As pessoas ficam por ali a ver a água correr, a lavar os carros, a tomar banhos de rio fresco e límpido, a fazer domingo com poucas regras, pormenores de vida vivida em liberdade só já possíveis onde a terra é vermelha. Lembrei-me de Portugal. Que aconteceria em Portugal se os carros decidissem passar por baixo da ponte e não por cima? E se decidissem tomar banho debaixo da ponte? Xiii... ia haver decretos a serem invocados, e a segurança, e placas a proibir, as leis para cumprir. Em Boane há uma ponte e a lei que corre debaixo dessa ponte é a da vida e a da vontade das pessoas. Regressámos. Os miúdos vieram lá atrás, na caixa, cabelos ao vento, aventura no peito. Comprámos pão de lenha contado e servido com a mão do homem. E frango de churrasco. Era já noite quando acabou o nosso almoço. Esse almoço que começou na coincidência de uma vontade, visitou terras e gentes de paz, revisitou o Leonardo Di Caprio, fez car wash no rio que corre e acabou no odor do pão que o lume da lenha cozeu. Car Wash Made By Boane. Ou então, Sunday Afternoon Made By Africa!

jpv
----------------------------------
Fotos do Dia:
 Porto da Matola

 Condutas de Água, Belo Horizonte

 Belo Horizonte

 Belo Horizonte

 Belo Horizonte

 Belo Horizonte

 Boane

  Boane

  Boane

  Boane

 Boane

Crónicas de África - O Conselheiro Matrimonial


O Conselheiro Matrimonial

Maputo, 16 de janeiro de 2014

Podia começar a história pelo fim e contar já o telefonema, mas a coisa perdia a graça. A história só tem corpo porque existe a naturalidade desconcertante dos moçambicanos, a forma como atacam os assuntos sem preparação nem grandes introduções, e há também o seu sorriso, a sua alegria, a sua tão afamada, e tão verdadeira, boa disposição.

Esta é a história do I e do dia em que me tornei seu conselheiro matrimonial.

O I foi-me recomendado pelo célebre M sobre quem já aqui escrevi. Está com um problema senhor Paulo? Vai aí o I. E veio. Atrasado. Não muito. Não estranhei. Já estranhei o facto de ter ferramentas próprias, de começar e acabar um trabalho sem interrupções, de sacrificar-se para que tudo ficasse pronto no mais curto espaço de tempo possível. Percebi que ele valorizava o negócio que tinha e, como tal, dei-lhe atenção e continuei a dar-lhe trabalho.

Eu trato-o por I, ele trata-me por boss. Tudo normal, portanto. Mas um dia surpreendeu-me. Fora um trabalho complexo. Dois dias de volta daquilo até deslindar o problema, encontrar a solução e aplicá-la. E nesse dia eu notava-o mais calado. Ele gosta de trabalhar e ir explicando o que está a fazer, mas naquele dia estava apreensivo. Olhava para as coisas demoradamente, olhava para mim, e parecia engolir. Foi depois de ter terminado que o I explodiu:

- Boss... preciso da tua ajuda.
- Como assim?
- Eh boss vou-me casar.
- Eh pá, grande notícia. E para quando é isso?
- No sábado, boss...
- No sábado? Mas já hoje é quarta!
- É boss, mas ela não quer aquela pessoa que eu arranjei para cozinhar e tenho de ir buscar outra e preciso ir comprar... xiii boss, 'tá complicado.
- E precisas de ajuda?
- Preciso, boss...
- Diz lá...
- Como é isto do casamento boss? Eu não sei estar casado. É, nós namoramos faz um tempo, mas deve ser diferente de estar casado, não sei bem como fazer... tu estás casado há muito tempo, podias dar-me aí umas dicas, uns conselhos... mulher não é fácil boss...

Tremi! Não estava à espera e a responsabilidade do que dizemos numa altura destas, a partir de uma pergunta colocada com tanta naturalidade e tanta necessidade, assustou-me, mas o I estava aflito e não me apeteceu vacilar nem mostrar-lhe complexidades. A vida ensina, pensei, agora é só dar umas orientações.

- Ouve, I, não há receitas. O que te vou dizer pode resultar com uns e não resultar com outros. Cada situação tem de ser avaliada. A primeira coisa que te vou dizer é para não te assustares quando surgirem problemas, os problemas são normais. Não podes desistir ao primeiro problema porque é a superação deles que fortalece uma relação.
- Mas os problemas doem, boss.
- Claro, mas a dor é uma força. A segunda coisa que te digo é para falarem sempre e de tudo. Nunca guardes uma conversa, não deixes azedar um assunto, um desentendimento, nunca te vás deitar zangado com ela.
- Eh boss, não dá...
- Dá, dá, basta que seja a tua vontade, a tua prioridade.
- Eh boss, mas ela às vezes não me quer ouvir.
- Quer pois.
- Quer?
- Quer. Ela diz-te que não te quer ouvir, mas quer. É como quando lhe dizes que vais sair com os amigos sem ela. Ela diz-te que está bem, mas não está.
- Eh boss, não dá, tá mal... ela diz ao contrário.
- Claro!
- Para quê?
- Para ver se tu descobres por ti o que ela quer... se vais ao encontro dela...
- Como fazer boss?
- Simples... sempre que começas a falar com ela, dás-lhe razão e pedes desculpa. Como princípio genérico, entendes? Não interessa sobre o que é a conversa, dá-lhe logo razão. Ouve lá, quando têm uma discussão, quem é que acaba a ter razão?
- Ela.
- Pronto. Aí tens. Se lhe tivesses dado razão à partida, não tinhas discussão.
- Mas e o que eu penso? Eu posso ter razão, não é boss?
- Podes, mas ela vai-te reconhecer essa razão mais rapidamente se primeiro lhe deres razão a ela!
- Não pode!
- Pode, pode... experimenta... Por exemplo, para que é que tu queres um sofá?
- Para sentar.
- Certo. Então o que é te interessa a cor do sofá?
- Nada.
- Pois, mas a ela interessa! Logo, quando forem comprar um sofá para que é que hás de estar a discutir a cor do sofá se tu só o queres para te sentar e beber uma geladinha?
- Tá certo, boss... e o dinheiro?
- Partilha tudo! Ou são um casal ou não são. É como sair com os amigos... se ela é a tua dama porque não há de ir... A única coisa que te posso dizer é para não gastares tudo de uma vez... ires poupando porque podes precisar ao longo do mês...
- Pois é boss, ela pode entrar aí num supermercado ou numa loja e de repente foi-se tudo e depois como é amanhã?
- Lá está... sei lá, se tiveres 8 para gastar, combina gastarem 4.
- E resulta?
- Mais ou menos.
- Ai...
- Pois... ela vai gastar os 8 na mesma só que vai levar mais tempo. Tempo que tu precisas...
- Xiii boss, é isso mesmo, como não lembrei disso...
- Olha, e não te esqueças que o sexo é muito importante.
- Claro...
- Mas não é só para ti...  tens de... como dizer... tens de ter a certeza de que não és egoísta, também pensas nela, és carinhoso com ela. E falem, falem sobre o que gostam e o que não gostam... comuniquem... Queres ter filhos?
- Claro.
- Já pensaste quando?
- Não...
- Lá está... já pensaste que uma criança dá muito trabalho e é muito absorvente e tu ainda agora estás a casar... talvez fosse melhor dares um tempo para a conheceres e criares intimidade e depois pensas em filhos, mas isso são vocês que avaliam...
- Eh boss e há assim alguma coisa proibida, que a não se pode fazer?
- Há.
- O quê?
- Violência. Nunca podes ser violento. Nem com os gestos nem com as palavras. As mulheres são sensíveis a isso e tu deves ser o primeiro a respeitar a tua mulher, afinal de contas escolheste-a...
- Ou fui escolhido!
- Tens razão! Mesmo assim...
- Tens razão boss. Violência é má onda...

A conversa foi assim, crua, pura, sem preconceitos, sem rodeios, direta, positiva... E o I lá foi à vida dele um pouco mais seguro. O tempo passou. Já lá vão mais de dois meses e, ontem, à hora do jantar, o telefone tocou, vi o nome do I no visor e voltei a estremecer, Ai meu Deus, se ele me está a ligar... o que se terá passado...

- Sim... Estás bem I?
- Tudo bem boss. Tinha dado um sinal, mas o teu telefone estava morto. Pensei que tinhas viajado.
- E viajei, mas já estou de volta.
- E correu tudo bem por lá?
- Sim, graças a Deus. Tudo fantástico. Estive com o meu filho, família, amigos...
- Boss estou-te a ligar para desejar um bom ano e para te agradecer...
- Então? A vida de casado é boa? Está tudo a correr bem?
- Muito boa boss! E as tuas dicas foram muito eficazes, boss, resultam na perfeição... está tudo tranquilo... então aquela de dar razão para começar a conversa... eh boss, comecei a ter razão mais vezes...

E largámo-nos os dois a rir e percebi que o I está numa fase feliz da sua vida. Uma fase de crescimento. Uma fase de aprendizagem. E assume isso com naturalidade, receios, poucas expectativas, mas a mesma esperança e a mesma alegria que inundam o olhar, o sorriso e os gestos das gentes moçambicanas. Há menos conceitos por aqui. E isso faz com que haja menos pré-conceitos... E as coisas que dizemos, se vierem do coração, são assim interpretadas e são intuídas e postas em prática como se a vida fosse fácil. E talvez seja, nós é que, por um sinuoso processo mental de justificação da nossa própria existência, andamos a inventar que é complexa. Mas não é. Os moçambicanos não inventam nada disso. Eles sabem que a vida é simples. É só para viver. E têm essa verdade mais segura do que qualquer outra.

jpv

Crónicas de África - Kaapsehoop


Crónicas de África - Kaapsehoop

Nelspruit, 6 de outubro de 2013

O fim de semana foi longo. Em Moçambique foi feriado na sexta feira, dia 4 de outubro. É o dia da Paz. Abençoada!

Porque precisávamos de descansar, porque era necessário fazer manutenção na viatura, decidimos vir ainda na quinta feira, ao final da tarde, até ao High Hide Lodge, visitar os nossos amigos, Norman e Debbie.

Quando chegámos, com a sua imensa simpatia, Debbie tinha feito uma cottage pie para nós. Estava deliciosa. É uma espécie de empadão, feito numa taça de "Pyrex" que vai ao forno. É de batata e o recheio de pedaços de carne, entre eles, bacon. Também leva cogumelos e ervilhas. Tem um molho delicioso. A saber a ervas e um pouco de caril.

Estranhámos o silêncio. Na grande Capital moçambicana é difícil ouvir o silêncio. Aqui, está em todo o lado, cortado, a espaços, pelos pássaros e pelas rãs.

Na sexta feira, dedicámo-nos a fazer quase nada. Ler. Dormir. Grelhar. Comer. Descansar. O ritmo vinha sendo intenso e a paragem foi providencial. Norman levou o carro para a manutenção e trouxe-o à noite.

No sábado, já com o carro pronto, fomos descobrir um pouco mais de Nelspruit, mas a única coisa verdadeiramente significativa que me vem à mente sempre que a visito, é que a cidade parece um gigantesco subúrbio de Maputo. É um pouco como quando se vai a Andorra e se está sempre a tropeçar em portugueses e a língua mais falada nas ruas é o português. Nelspruit está repleta de portugueses e moçambicanos e ouve-se falar português em cada esquina. Há mesmo empregados nas lojas e nos restaurantes que se abeiram de nós, olham-nos e soltam um  Bom dia! bem pronunciado. Nelspruit fica a 200km de Maputo o que quer dizer entre duas a três horas de deslocação dependendo do movimento que houver na fronteira. Já a passámos em vinte minutos e já a passámos em duas horas. Com o tempo, aprendemos a conhecer e a evitar os momentos mais concorridos.

Hoje, estávamos convidados para ir comer panquecas a uma terra chamada Kaapsehoop. Os sul-africanos pronunciam qualquer coisa como Kaps-a-uârpe.

Foi uma surpresa. É uma terrinha muito pequenina. As ruas, ou são de terra batida, ou são pavimentadas como se fosse a entrada de uma garagem, ou seja, duas tiras de pavimento, uma para cada pneu, separadas por relva. Os passeios são todos em relva verdejante. Todas as casas são como as de Pilgrims Rest, a imitar as do tempo da corrida ao ouro no início do século XIX, construídas em zinco e depois pintadas. Todas têm alpendres, num claro sinal de que o clima permite "vida de varanda". Muitas casas têm as portas abertas e os visitantes são convidados a entrar, a provar os produtos caseiros e a adquirirem-nos, se quiserem. As pessoas são de uma simpatia extrema e olham cada visitante como uma novidade que chegou a Kaapsehoop.

Entrámos na casa de Anabelle, uma senhora a rondar os setenta anos. Ela veio à porta saudar-nos:
- Olá, como estão?
- Estamos bem, obrigado.
- Viram por aí o Mr. Dumpling?
- O Mr. Dumpling?
- Sim, o meu gato às riscas.
-Ah, sim. Um gato enorme que está ali fora!
- Se ele vos aborrecer, não liguem. O meu gato não sabe que é gato!
- ?!
- Pois, isso mesmo. Ele é filho de uma gata selvagem que o abandonou à nascença. Um vizinho encontrou-o no mato e trouxe-mo. Era do tamanho de um dedo. Dei-lhe leite num biberão. Primeiro, de meia em meia hora. Depois, de hora a hora. Um ano mais tarde, o malvado ainda bebia leite pelo biberão, mas eu já não tinha de lho dar à boca, dava-lhe o biberão e ele agarrava-o e bebia sozinho. Assim que abriu os olhos, a primeira coisa que viu foi a minha cara, viveu sempre cá em casa e julga genuinamente que eu sou a mãe dele e que ele é humano. Ele não sabe que é gato!

Anabelle mostrou-nos fotos do Mr. Dumpling a beber sozinho pelo biberão e ele veio ter connosco a pedir festas. É um gato com doze anos, mas mais parece um texugo. É enorme e está gordíssimo.

Outra particularidade de Kaapsehoop são os cavalos selvagens. Animais belíssimos, enormes, de todas as idades, que nascem no mato e nunca foram domesticados. Vivem em estado selvagem. Quer dizer, semi-selvagem. A verdade é que se habituaram a invadir a cidade, percorrem as ruas, abrigam-se na sombra das árvores e metem-se com os visitantes se lhes cheira a presentinho mastigável. A Paula deu-lhes rebuçados e quando quis vir-se embora, eles cercaram-na e só a deixaram em paz quando ela lhes deu todos os rebuçados que tinha na mala. Como é que eles sabiam que havia mais rebuçados na mala é que eu não sei. Enfim, ela recebeu em troca um monte de baba de cavalo na palma da mão.

Por fim, fomos às panquecas. Comemos à sombra de um enorme carvalho. Salgadas, doces, agri-doces, há para todos os gostos e são ótimas. Foi numa casa transformada em restaurante de panquecas chamada "Koek 'n Pan".

Agora, aguarda-nos o trabalho, mas pode dizer-se que recuperámos muitas forças. O sono, o descanso e a novidade são excelentes alimentos para o espírito. O corpo, esse, contenta-se com grelhados na brasa e panquecas!

jpv



Kaapsehoop - Casa.


Kaapsehoop - Cavalos selvagens passeando na rua.


Kaapsehoop - Potro comendo guloseima.


Kaapsehoop - Casa das abóboras.


Kaapsehoop - Pormenor de alpendre.


Kaapsehoop - Interior da Igreja. O altar é um simples
estrado com um janelão para a rua. A cruz faz parte da
estrutura da parede.


Kaapsehoop - Sinal de trânsito a dizer para se ter cuidado
porque passam crianças, gatos, cães, rãs e fadas!


Kaapsehoop - Casa.

Crónicas de África - Os Novos Chineses


Crónicas de África - Os Novos Chineses


Todos sabemos que o imenso poderio económico e financeiro da China começa a revelar-se e a ganhar proeminência internacional à medida que a Europa e os Estados Unidos são assolados por crises. Não espanta, pois, que os chineses invistam em mercados com grande potencial como é o caso de África. Ora, como esta gente faz o trabalho de casa e se prepara a sério para os desafios que tem de enfrentar, há uma imensa oferta de cursos de Língua Portuguesa nas universidades chinesas. E a razão está fácil de perceber. Se a ideia é entrar em África, então convém estar munido da mais importante das ferramentas. As línguas que aí se falam.

Aqui em Maputo veem-se muitos, mas não são os chineses a que estamos habituados. São diferentes.

Os chineses a que me habituei, por ler, por ouvir contar, por ver nos filmes e documentários, são pessoas que, independentemente de serem ricas ou pobres, e eram sobretudo pobres, eram muito discretas, deslizavam em passinhos curtos e silenciosos e falavam em palavras curtas e pouco sonorosas. Discretos, portanto. E contidos. Além disso, pessoas muito austeras, de poucos sorrisos e quase nenhuns risos. Isto pode estar tudo errado, mas é a imagem que tenho.

Depois, com o passar do tempo, surgiram outros chineses. Os das lojas e dos restaurantes, em Portugal. Esses falavam um pouco mais, trocavam os erres pelos eles, mas continuavam pouco sorridentes, quase só se viam nas ditas lojas e restaurantes, praticamente não se viam em locais públicos, permaneciam discretos e nada ostensivos de bens.

Em Maputo há uma nova casta de chineses. Em primeiro lugar, falam português com uma assinalável fluência, um sotaque muito treinado e uma amplitude vocabular invejável. Frequentam restaurantes e locais públicos, enchem as mesas de iguarias e canecas de cerveja, fumam demorados cigarros e charutos gordos, fazem-se transportar em veículos quatro por quatro de alta cilindrada e modelos recentes, trabalham como gestores de obras de construção civil seja de âmbito privado, seja público e falam alto, riem-se e brindam estalando as canecas estridentes da cerveja uma das outras.

Nós, portugueses, fazemos quase tudo isto. Mas nós somos mediterrânicos. Está na nossa matriz comportamental. A imagem que tinha dos chineses não era nada esta. Eu nem sabia que eles eram capazes de falar alto, quanto mais de saírem inebriados de um restaurante em conversas sonoras e gargalhadas soltas ao ar quente de África. Das duas uma: ou o continente vermelho muda as pessoas, ou há qualquer coisa, outrora adormecida, que anda a acordar nestes novos chineses. Como disse um amigo meu: Mao, mao!
jpv

NetWorkedBlogs