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3 de janeiro


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3 de janeiro

Se o meu pai fosse vivo, faria hoje 80 anos. Não é. Mas faz na mesma. Nos nossos corações.

Este ano não vou escrever nenhum poema, nenhum texto saudosista a realçar a falta que ele nos faz. Faz-nos a falta toda que é possível um ser humano fazer, sobretudo tratando-se de um homem que nos orientava e preenchia e os afetos.

Hoje, mostro uma foto. Nessa foto está toda a minha vida. A que houve antes de mim. A que haverá depois de mim.

Essa foto, para mim, é uma espécie de calendário cósmico, uma sinopse de toda a existência, pelo menos a que vale a pena! É o meu pai, orgulhoso por ter o neto ao pé. Olhando a televisão, segurando o miúdo com a pouca força que lhe restava. E é o meu filho, com a curiosidade no olhar, usufruindo da tranquilidade que o avô lhe passava. O meu pai não chamava o neto para o pé dele. Aliás, o meu pai não chamava ninguém para o pé dele, nem mesmo os animais, mas fazia com que nos sentíssemos bem ao pé dele quando lá estávamos e depois éramos nós que queríamos voltar para o seu pequeno universo de afetos. Até nisso, era diferente. E talvez por isso, havia uma pomba que o visitava todos os dias à janela da sala de jantar sem a ele a chamar. Por isso e pelos pedacinhos de pão. Os mesmos que faziam toda a gente, em particular, as minhas tias, quererem sentar-se ao lado dele à refeição. É que, antes de começar a comer, o meu pai, partia pedacinhos de pão e fazia uma fileirinha deles ao lado do prato...

Estava aqui a pensar, e tomei consciência de que morreu há quinze anos. Fez ontem quinze anos. E ficámos com esta cronologia estranha. Falecido a dois, nascido a três, sepultado a quatro. Há qualquer coisa de místico nesta sequência pois que ao longo dos últimos quinze anos o tenho tentado sepultar, mas persisto em vê-lo renascer. Em mim, na minha irmã, na minha mãe, na minha mulher, no meu filho, nos demais familiares, nos amigos... e vem sempre com a mesma tranquilidade, a mesma serenidade. Talvez seja isto que este homem era mais farol do que homem. Pois, farol seja, farol permaneça!

In Memoriam Jaime Neves Videira, 3/01/1394 - 2/01/1999

jpv

O Longe e a Distância


O Longe a Distância

Foste a chegada
E desenhaste a partida.
Deixaste derramada
A semente da vida
Com uma enxada visceral
Numa terra escondida.
E a terra sou eu.

Nada tenho de meu
A não ser o que deixaste.
Herança imensa e pesada,
Estar à altura de teu gesto,
Tua atitude honrada
A poder de sacrifício.
Tinhas onze mandamentos,
Os outros
E o teu.
Dez, andam por aí,
Sendo cuspidos,
E o outro é meu.
Tu és a minha razão,
O meu sopro,
A inspiração na dor
E o sorriso na alegria.
Não vejo o dia de abraçar-te.
E não me importo de morrer para isso,
Por magia, encanto
Ou benigno feitiço.
De suave e doce morte,
Ou de violenta e dolorosa sorte.
Não importa o caminho,
Luminoso ou escuro,
Desde que sejas tu o porto seguro.
O futuro
Onde não há Futuro.

Estou só e preso
Em mim.
Vivo e morto
Sem fim.
E não há caminho,
Nem libertação,
Nem sonho,
Nem promessa, nem arte
Que tenha a força de amar-te.

E continuas aqui.
E és tão pouco
E tanto.
És a letra do canto,
A lágrima do pranto,
A saudade e a superação.
Olha para mim, pai,
E estende-me a mão!

jpv
À memória de meu pai.
1934/1999

Receba as Flores que lhe Dou


Querida Mana,

Por vezes, quando menos esperamos, de onde menos esperamos, emerge em nós uma memória que existia, viva, mas adormecida. Aconteceu-me esta semana. E o engraçado é que as memórias alimentam-se de outras memórias e nós relembramos uma coisinha e, se pensarmos nela, afinal havia um universo inteiro agarrado a ela.

Era noite tardia. Vagueava pela net à procura de quase nada, umas ideias para uns materiais e, às tantas, alguém tinha feito um vídeo sobre o assunto. Cliquei, mas o vídeo estava indisponível. Contudo, ali ao lado, naquela carreirinha de sugestões, estava um clip chamado "Receba as Flores que lhe Dou".

Nem precisei começar a ouvir porque o que ecoou de imediato na minha mente não foi a voz do Nilton César. Foi a da nossa mãe. Fosse em casa, enquanto cozinhava, limpava, passava a ferro, fosse na loja enquanto fazia uns embrulhos ou marcava uns produtos, lembro-me de a ouvir entoar, como quem anuncia ao mundo que as coisas podem ser sempre feitas com boa disposição, esses dois versos iniciais:
Receba as flores que lhe dou
E em cada flor um beijo meu...

Eu acho que essa espontaneidade, essa natural tendência dos pais para mostrar aos filhos que o mundo é um lugar agradável para se estar e a vida é preciosa e deve viver-se cada minuto com ilusão e esperança, está, definitivamente, a perder-se. As nossas crianças crescem a ouvir falar de problemas, de crise, de competição, de numerus clausus, de impossibilidades e não ouvem os pais cantar ou declamar. A mãe não cantava só esta. Se bem te lembras, às vezes lá vinha com o "Ser marinheiro//Deste velho cacilheiro", e aquilo despertava em mim a imaginação e a vontade de viver e ser feliz e conhecer esses fantásticos universos que as canções que a mãe trauteava refletiam. E sempre que alguém fazia anos, lá vinha ela, como às vezes ainda faz, Com que então, caiu na asneira...

É preciso alimentar as crianças de esperança, é fundamental semear nos jovens a alegria de viver e a vontade de ser feliz. É mais preciso isso do que qualquer outra coisa. Não interessa que formes muito bem uma pessoa, que a dotes de excelentes recursos financeiros, se não a ensinares a sonhar. São os sonhos que impelem o homem a mais, a melhor, a superar-se e os sonhos são livres e grátis. Eu sonhei. E, naturalmente, muitas vezes me desiludi, mas nunca baixei os braços porque os sonhos reproduzem-se e são fáceis e alimentam a capacidade de realização. 

Fiquei retido na letra. E, numa primeira reação, pensei que era um texto lírico de um exagero absurdo, e depois reparei que estava a cantá-la e a sabia de cor. Eu, que, momentos antes, nem me lembrava que a canção existia! E percebi que não era um exagero. Os nossos pais viveram aquelas palavras, personificaram aquele romance e, mesmo hoje, apesar da separação que a lei da vida impõe, ainda se pode dizer "Que seja assim por toda a vida..."

Acho, Mana, que somos filhos do sonho. O sonho dos nossos pais que era tão singelo e por isso se concretizou. E acho também que somos filhos da música. A música que a mãe trauteava, a música que o pai, às vezes, dançava... só um bocadinho...

Beijo,
Mano. 

Homenagem

Aqui se interrompe a narração de "Estórias ao Acaso: Noite Fria" para, em palavras breves, se prestar uma singela e sentida homenagem.Faz hoje onze anos que morreu um homem que faria amanhã 76 anos.
Foi o mais extraordinário homem que conheci até hoje. Na sensibilidade, na honestidade, na educação e no respeito pelo próximo. No amor pela sua família. Na arte com que criou os filhos e os ensinou a superar as dificuldades da vida.

Obrigado Pai.
És insubstituível e viverás para sempre na nossa memória e nos nossos corações.


O teu rapaz.

Três à mesa

[A razão principal da guerra no Iraque não foi a questão das armas de destruição maciça, mas o afastamento de Saddam, a fim de permitir a Washington "retirar as suas tropas da Arábia Saudita e abrir caminho ao controlo global do conflito no Próximo Oriente". A afirmação é de Paul Wolfowitz, braço direito de Donald Rumsfeld e número dois do Pentágono. Herman José é constituído arguido no caso da pedofilia. Paulo Pedroso é detido no âmbito da investigação do mesmo caso. O F.C. Porto vence a Taça Uefa na final contra o Celtic de Glasgow treinado pelo incontornável José Mourinho.

Data da primeira publicação: 30 de Maio de 2003]

Três à Mesa
Olá mana,
Lembro-me de quando ainda éramos quatro à mesa.
O pai no topo, cotovelos assentes e mãos entregues uma à outra como que encimando uma pirâmide. Olhava-nos com a alegria de quem vê crescer uma obra de arte. A sua obra de arte. E o seu sentir era um misto paradoxal do altruísmo de quem deixa crescer, de quem sabe deixar viver, e do narcisismo de quem se regozija na contemplação de si na sua obra. Nós ladeávamo-lo. A mãe e tu de um lado, eu do outro, bem de frente para ti, à distância de uma malandrice, de um risinho, de um segredo por desvendar. A mãe chegava-se bem para cima até conseguir cruzar um braço seu com os do pai. Às vezes penso que fazia isto só para sentir a força. Era a nossa mestra da mesa no preparo dos alimentos, no cruzar artista dos temperos. Lembro-me de a ver olhar o pai e servi-lo com o carinho e o desvelo de quem guarda um tesouro. E nós, cachopos de pontapés por baixo da mesa a retomar uma qualquer escaramuça de antes da refeição, nem reparávamos no milagre que ali tínhamos. E com o passar do tempo aquele ritual de quatro à mesa instaurou-se nos hábitos, no estar, no ser e ajudou a construir as pessoas que somos hoje. Era muito mais do que estarmos juntos. Tratava-se de um momento íntimo daquele núcleo de força, daquela família. O mundo lá fora podia estar a desabar de desgraça, a inchar de riso, a política podia mudar, a finança podia colapsar, podíamos até estar zangados, tristes uns com os outros ou só com o rumo da vida mas… àquela mesa não se faltava. Aquele era um momento em que estávamos os quatro em um só. Era a reunião do clã. Tudo ficava para trás e o mundo era nosso por uns momentos. Por esse tempo, de vez em quando, um de nós caía à cama com as maleitas próprias do tempo ou dos descuidos que marcavam a idade em que os casacos estorvavam e os chapéus-de-chuva eram para os velhos. Depois do tempo necessário para a recuperação ter passado, assinalavam-se as melhoras do paciente com o retorno ao convívio à mesa dos quatro. Ainda me lembro de pensar, ingénuo, no dia em que regressou à mesa após o primeiro enfarte que o pai estava curado, até já tinha jantado connosco!
Sabes, assaltaram-me estas lembranças quando um destes dias fui a Lisboa com a Paula participar num congresso. Numa das pausas para almoço dirigimo-nos a um restaurante da Universidade e, por via da falta de lugares, partilhámos a mesa com uma pessoa desconhecida. Foram minutos dolorosos de silêncio, dolorosos de indiferença, de nada para dizer. Três à mesa e ninguém parecia estar ali ou querer ali estar. Só então percebi o quão íntima é uma refeição. Tudo o que de nós revelamos nos pequenos gestos, nas opções mais insignificantes. Só então percebi que a impessoalidade cresce entre nós por mais que sejamos. Ali estava eu numa urbe de milhões, cercado de semelhantes aos milhares e completamente só numa mesa com três pessoas. Ali se cometera um crime. Ali se assassinara o milagre da refeição. Em nome de quê? Em nome de quê a indiferença? Em nome de quê a impessoalidade? Em nome de quê a solidão? Em nome de que crescimento este definhar das relações humanas? Ainda esbocei um gesto que salvasse o momento:
- Vou buscar cafés, a senhora aceita um café?
- Eu pré-comprei o meu. Obrigada.

E pronto. A tecnologia dos almoços em pé, dos pré-adquiridos, dos pré-comprados, dos pré-pagamentos, aniquilou o meu estender de mão e hoje guardo, para contar aos netos, a história triste do dia em que almocei com uma desconhecida, em que violei a sua intimidade e vi a minha devassada sem saber porquê. É essa a parte que me assusta : três à mesa sem saber porquê!

Beijo,

Mano.

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