Futebol sem bola

[O ano de 2002 termina e fica marcado pelo Mundial de futebol, pela luta contra o terrorismo, pelos escândalos de abuso de menores e por alegados casos de corrupção no mundo do futebol

Data da primeira publicação: 13 de Dezembro de 2002]

Futebol sem bola

Querida mana,

Cá estou de novo a aborrecer-te com as minhas memórias do presente. Receio que os pensamentos que me acordaram hoje sejam demasiado masculinos para a tua paciência. Espero poder compensar-te nas entrelinhas.
Esta manhã acordei, como de costume, ao som de uma rádio qualquer, contudo, ao invés do costume ainda agora invocado, não passava música mas o noticiário desportivo. E nós já vamos dizendo desportivo sempre que só se fala de futebol numa metonímia traiçoeira. E as notícias foram-se sucedendo e eu notava-lhes algo de estranho, anormal. Na verdade, não notei logo essa anormalidade talvez por se tratar de uma anormalidade vestida, aos poucos, paulatinamente, com as cores da normalidade quotidiana. Mas o espírito é persistente e o meu lá acabou por encontrar a causa daquela comichão que me incomodava o pensamento. É que da fiada de notícias, muito encarreiradinhas como os pinhões nas feiras a fazer fio de trazer ao pescoço, sobressaía muita gravata, muito fato cinzento, muito senhor de voz grave e ascendência séria, muita secretaria mas pouca magia! Não ouvi um único desportista e da bola nem notícia! Provavelmente estava abandonada num qualquer canto do balneário impregnado de suor e herudóide. Sabes, o futebol cada vez tem menos bola! Acredito mesmo q, sentado em posição estratégica, numa bancada de um extremoso estádio português, um adepto, por fervoroso e dedicado que seja depara-se com duas dificuldades. Uma é reconhecer a sua equipa a outra é vislumbrar no campo, por detrás da névoa imensa deixada pelas acusações, pelas movimentações, pelas lesões, pelas opiniões e pela luz das televisões, a pobre da bola! “Onde está a bola que não a vejo?” Pergunta este nosso amigo incrédulo. Onde está não sei, mas digo-lhe, se a quiser procurar, onde ela esteve verdadeiramente brilhante e redonda, cheia de pujança e magia: esteve na varanda da minha avó! Sabes mana, estamos a envelhecer muito depressa. Vê lá que ia todo lançado para a varanda das memórias quando reparei que me referi, atrás, a dois conceitos desactualizados, quase sem sentido que não sei se entenderás. Por isso tos esclareço.
Adepto. Já não há ou há muito poucos. Deves ter ouvido falar deste senhor mas provavelmente chamaram-lhe investidor, accionista ou coisa do género. O adepto era desinteressado e o desinteresse, hoje, já não interessa. O adepto via ganhar com golos, hoje pode-se ganhar de muitas outras maneiras, é o que faz a diversidade!

Sua equipa. Este conceito também já não existe. Nem mesmo clube faz muito sentido. Hoje, estes fenómenos são designados de SAD (olha a ironia do significado disto em inglês), companhia, empresa, sociedade de investimento, tudo coisas que ficam bem sobre o tapete verde de relva! Enquanto for verde!

Voltemos à varanda da memória que agora já vai sendo, espero, da curiosidade. Diria, hoje, que era pequena mas na altura, se bem me lembro, era do tamanho do mundo. Cabia lá, inteirinho, um Domingo de aventuras, de conversas animadas, de petiscos preparados pela avó, de futebol com bola. Naqueles três metros quadrados sentava-se o pai à direita, num sofá de napa azul escura. À esquerda o avô num sofá gémeo do primeiro. Em torno deles amontoavam-se cadeiras com genros, filhos, primos, irmãos... a maioria ia e vinha. As mulheres actualizando as suas conversas chegavam de quando em vez com mais um pirezinho de qualquer coisa irrecusável que as mãos milagrosas da avó prepararam. A garotada, brincando lá para dentro, vinha perguntar o resultado – “quantos há?” – mais para ver a expressão rabugenta do infeliz contemplado com os números menos favoráveis do que para saber realmente quantos havia. No centro deste concentrar de emoções havia uma mesinha frágil onde ficava a telefonia e onde, inevitavelmente, os impressos do totobola eram premiados com rodelas de humidade escorrida dos copos da melhor cerveja do mundo: a que o nosso pai bebia e partilhava com a mãe num prazer e numa cumplicidade singulares e que era a mesma que deixava pedacinhos de espuma branca no bigode do avô que sempre se ia queixando do fígado como quem não quer a coisa mas sempre o compensava com mais uma cervejinha e um ovo estrelado: “ó Ana traz-me outro!”. Nesse tempo, no tempo em que o futebol se jogava com bola numa varanda de terceiro andar em Odivelas pós-75, sabia-se que era Domingo só de vir à rua! Nesse tempo se dissesses o nome de um jogador dizias o nome da tua equipa e podias erguer esse nome como uma bandeira com a segurança de quem sabe que há coisas que estão primeiro, que há coisas que se não traem! Chalana era Benfica, Manuel Fernandes era Sporting, Frasco era Porto... isso era seguro, não mudaria. E não mudou! Nesse tempo quando um jogador marcava e beijava a camisola encontrava lá o emblema do clube, hoje beija os logotipos das multinacionais, dos casinos, das cerâmicas, dos supermercados! Meu Deus, nem tínhamos a palavra logotipo e que felizes éramos. No tempo em que o futebol se jogava com bola, a telefonia, rodeada pelos cravos, pelo chá príncipe e pelo gindungo que a avó plantava na floreira da varanda oferecia o bailado do relato do Jorge Perestrelo e ele ainda dizia mais vezes “goooolo” do que “mas o qué qué isso ó meu!”. Nesse tempo, em que havia menos dirigentes, menos árbitros e muito mais bola, nós regressávamos à escola na segunda de manhã e discutíamos os lances que víramos na rádio, e jurávamos que a bola tinha entrado, que o penalti tinha sido, que a minha equipa era melhor que a tua. Tudo dentro das quatro linhas, no tempo em que o futebol se jogava com bola na varanda da nossa avó!

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