O boné

[Este texto foi publicado em duas partes, em dois números consecutivos de "O Entroncamento". Republica-se, aqui, na íntegra. A nave espacial Columbia é lançada ao espaço para uma missão científica de 16 dias com uma tripulação de sete astronautas, entre eles o primeiro israelense a ir ao espaço. Portugal é o país da União Europeia com o maior número de regiões a figurar entre as 10 mais pobres do espaço comunitário, de acordo com dados divulgados, em Bruxelas, pelo Eurostat.

Data da primeira publicação: 3 e 17 de Janeiro de 2003]
O boné
Olá mana.
Ontem precisei de uma roupa mais velhota para fazer uns trabalhos cá em casa. Teria de ser algo próprio para o pó, pingos de tintas, manchas de óleo... essas coisas que, de quando em vez, atacam a população masculina e a impelem em romaria domingueira para as mangueiras e os champôs para carro, com cera-extra, claro! Mas, adiante com o andor porque nem ontem foi domingo nem eu estive a lavar o carro, aliás, tal facto salta aos olhos. Nem tão pouco já me lembro do que fui fazer, talvez entreter a alma e distraí-la de si mesma e da sua existência contemplativa de um mundo em corrosão. Na busca dos tais trapos, por gavetas de parcas visitas e cheiro a livros antigos e cânforas ressequidas, impregnadas daquele odor que, só por si, nos faz lembrar alguma coisa que nunca sabemos o que é e que somos nós próprios ou, mais precisamente, estilhaços de nós que deixámos algures no passado e nos esquecemos de trazer connosco. Numa dessas gavetas encontrei um boné de pele, castanho-escuro, usado. Tão usado que a pele estava fina, como se fosse romper-se, o toque era suave e aveludado. Era o boné do nosso pai. É claro que as primeiras memórias, as que estão ali, à porta da alma, esperando o mais insignificante pretexto para nos abrirem o passado, os risos, as expressões do pai, o sorriso malandro quando enterrava o boné e o punha ligeiramente de lado como quem invoca tropas tropicais em motos vaidosas e áfricas perdidas, foram as primeiras a mostrar-se. Recordei o gesto do dedo que passava por cima da sua cicatriz, prémio de outras tantas áfricas e tantas outras aventuras em tempos em que a boina era outra. Mas, curiosamente, não me retive muito no pai, por si. Fiquei a pensar no boné ali e em tudo o que representaria para mim e para ti e porque o representraria. Fiquei a pensar no passe de mágica que o teria feito emergir de uma existência anónima de um bocado de pele castanha entre tantos outros para o estatuto singular de "boné do nosso pai". Sem querer minimizar o pai, convém, no entanto, a justiça de referir que, no mesmo instante, pensei que, também em relação a outras pessoas que nos tinham deixado, ou não, havia objectos que emergiam do anonimato e mereciam artigos definidos a precedê-los: a caneta do pai, a bata da avó Ana, os óculos da mimi, o anel da mãe, o apito do avô e, porque não, o pé do candeeiro do bisavô Marques! Procurei com ansiedade e alguma desorientação nos restolhos da minha mente os porquês de tão significativo feito em objectos bem pouco significativos e, concerteza, facilmente substituíveis! Uma coisa tinham em comum: o passado. Eram todos objectos do passado. Um argumento fácil seria admitir que são do passado porque esta coisa de adquirir uma existência própria leva tempo, leva vidas, ainda para mais tratando-se de meros objectos do quotidiano. Mas a explicação era demasiado fácil e desconfiei. Depois assaltou-me uma outra explicação, menos fácil, é certo: pensei que esses objectos não valiam por si mas pelas pessoas que os tinham possuído, que, enquanto objectos, não passavam de isso mesmo, mas saíam de si para representarem as vidas dos seus proprietários. Se assim fosse, porque me comoveu o boné do pai se já não há pai? Porque me agarro à bata da avó se já não tenho avó? A explicação não me satisfez! E o boné ali, à minha frente, à espera que eu o percebesse e eu, impotente para o trazer de novo ao mundo dos vivos, para o arrancar ao fundo da gaveta canforada!

Sabes, julgo que tem tudo a ver com dar e receber. As pessoas davam aos seus pertences um carácter único, insubstituível, tratavam-nos com carinho e estima como se os não pudessem perder sob pena de perderem um sinal de si, um pouco do seu ser. E os objectos devolviam a generosidade tornando-se símbolos da existência dos seus proprietários, enquanto vivos, respondendo-lhes que sim à matinal e quotidiana pergunta: "ainda estou vivo?". Depois de mortos aqueles, estes oficiam as memórias e mantêm aceso um espírito. É aí que está a diferença: há objectos que transportam consigo o espírito de quem os possuiu, há objectos que alongam um pouco mais a vida daqueles que partiram, chamando vida, claro, não à sua recordação, mas a um sentir absurdo e inexplicável da sua presença. Que bem que sabe. Que bom que é. Os objectos de que te falo hoje não foram pagos com cartões de plástico nem percorreram oceanos de suor e distâncias de continentes para custarem um preço qualquer terminado em nove numa loja onde se oferece tanto que já nem se sabe o que oferecer mais. Estes objectos não foram adquiridos num domingo porque então ainda havia domingo! Lembro-me bem, as mães abrindo as janelas tardias, os pais e a pequenada de volta da mesa, o colorido de um jogo de futebol visto na perfeição pela rádio, a tardinha a chegar, uma conversa, um doce, um café e a eternidade! Estes objectos eram expostos em montras de lojas como um trunfo único, jamais foram alinhados em filas de cinquenta iguais pelo mesmo preço, e havia prazer em mostrar, em vender, em comprar. Por insignificantes que fossem, estes objectos traziam consigo histórias de viagens, regateios, confecções mirabolantes, vinham ricos de aventuras e prenhes de vida. Estes objectos não eram descartáveis! Eis a diferença. Hoje trocamos as nossas coisas antes de atingirem o seu fim, cumprirem a sua missão. Hoje temos as coisas antes de precisarmos delas! Hoje as coisas são todas iguais e assépticas e se trouxerem uma história o mais certo é serem reclamadas: "preencha o impresso, por favor. Trouxe o talão de compra?". Hoje qualquer um tem qualquer coisa mesmo que seja coisa nenhuma! Hoje damo-nos ao luxo de não gostar das coisas e permitimo-nos o desvario de as deitar fora. Hoje substituimos tudo! O que me preocupa, mana, não são os pedaços de plástico inútil, nem tão pouco a banalidade dos objectos. O que me preocupa é estarmos a fazer o mesmo com os sentimentos. O que me preocupa é estarmos a parir espíritos descartáveis. Se eu não deixar um boné especial ao meu filho porque lhe deixo vinte ou trinta anónimos, talvez com publicidade na pala, onde deixo eu o meu espírito? Onde pára o espírito desta sociedade descartável?

Sabes o que me apetece? Um dia destes, quando tiver uma reunião descartável muito importante, com gente descartável muito importante, com roupa descartável muito importante vou levar o boné do pai na cabeça! Um dia destes, quando for à praia contemplar o imenso do mar até me perder nele, levo o boné do pai na cabeça! Quero acrescentar-lhe histórias, arrancá-lo à cânfora e dar-lhe vida para que ele cá fique... com histórias! Pode ser que um dia qualquer o meu filho se pergunte:"que faz nesta gaveta o boné do meu pai?"

Beijo
Mano

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