Onde está Ifigénia?

[Neste mês, tem início efectivo a guerra do Iraque. A Internet atinge os 500 milhões de utilizadores. As Nações Unidas criam um site para apoiar a Década da Alfabetização, que se desenrola de 2003 a 2012. Explicitando o conceito de literacia utilizado, afirma-se: "Literacy is about more than reading and writing - it is about how we communicate in society."

Data da primeira publicação: 14 de Fevereiro de 2003]
-
Onde está Ifigénia?

Olá mana.
Lembro, ainda com medo, aquela madrugada sangrenta de corações pequeninos e toda a vida depositada na coragem do nosso pai, da nossa mãe. Caminhámos céleres por entre silvos de balas enquanto a aurora nos traía a vida. Ficou-me na alma um cheiro de desespero, um pressentir de desgraça. A memória vai fechando janelas neste meu caminhar quotidiano para o fim, mas dessa madrugada não esqueço! Não esqueço o pânico. Não esqueço ter prometido nunca mais viver nada assim. Não esqueço a ausência absoluta de dignidade. Não esqueço que os homens matam sempre, não esqueço que os homens escolhem matar. Não esqueço que todos os dias nos atraiçoamos uns aos outros e ao milagre da vida que Deus nos concedeu. Essa guerra africana terminou. Outra se anuncia agora, lá longe, em terras secas de amor, áridas de vida e desafortunadamente prenhes de ouro negro! Sabes, quando andava na faculdade estudei, por razões várias, várias vezes, em vários textos, a história de Agamemnon. A este guerreiro, mais tarde herói, os deuses deram duas hipóteses: ou sacrificar sua filha Ifigénia e ganhar a guerra ou não fazê-lo para a não perder. E, num gesto de crueldade ímpar que viria a trazer uma história de sangue e perdição para todos os seus descendentes, Agamemnon mata a própria filha e ganha a guerra! Ganha! Ganha? Ganha…
-
Diz-me, mana, onde está Ifigénia?
-
Que sacrificamos nós em nome dos milhões que morrem todos os dias às mãos da guerra? Que sacrificamos nós? Onde está a nossa Ifigénia? Que razões avançam os nossos ilustres políticos para que se imole a pobre? Esta Ifigénia não é mais do que a nossa dignidade. Esta Ifigénia é a capacidade que temos de viver em paz. Esta Ifigénia é escolhermos amar. É a sanidade do nosso planeta, é o respeito ancestral que devíamos ter pela vida, pelo ser humano, por nós próprios! Sabes, mana, quando começarem os primeiros bombardeamentos morreremos todos um pouco, sacrficaremos o nosso mundo e, pior que isso, o mundo dos nossos filhos, porque, hoje, Ifigénia somos todos nós, os nossos vizinhos, os nossos filhos, a vida periclitante deste planeta… Ifigénia está em nós e em nós se sacrifica a sua pureza cada vez que um homem grita com outro, cada vez que um homem empunha uma arma, cada vez que um míssil é disparado, cada vez que, como agamemnones prepotentes e cegos, atentamos inutilmente contra a vida.
Lembro-me ainda do teu sorriso inocente naquela madrugada em que foste a minha Ifigénia sacrificada à estupidez humana. Lembro-me de ti quando ainda acreditavas que o mundo podia ser, como diz o Pedro Barroso, “um jardim de poetas superiores e verticais”.

Beijo.
Mano.

NetWorkedBlogs