Only You

[Esta é a primeira publicação deste texto: 19 de Maio de 2009]

Querida mana,

anos depois da escrita guardada, publicada e republicada, venho trazer-te novas carreirinhas de letras, fileirinhas de palavras a enformar as ideias que quero partilhar contigo. Será este o primeiro de uma nova série de mails que te vou escrevendo à medida que a vida escorre pelas paredes do tempo.

Há uns tempos li numa revista de curiosidades mais ou menos científicas que o cérebro nunca deixava de pensar. Nunca parava. Mesmo quando dormimos e até quando estamos em coma, há uma série de funções que a massa cinzenta que nos ocupa o crânio continua a comandar. A propósito disto, desenvolvi uma outra ideia, menos científica, ainda, mas em que gosto de acreditar: eu sei de fonte segura, a minha, que nunca deixamos de ouvir música! Por vezes pode não ser a música como a entendemos, com autor, gravada na bolacha de plástico... pode ser mais informalmente produzida o que não quer dizer que não seja música! Por vezes agradável, outras nem tanto. Acho até que os músicos, o que fazem, é limpar esta música do quotidiano, filtrá-la e dar-no-la a conhecer de forma mais agradável para os sentidos...

O que fazemos, depois, é seleccionar aquelas que nos despertam as emoções que mais gostamos de sentir e catalogá-las como preferidas.

Vem isto a propósito de, um dia destes, ter andado a vasculhar nos meus discos de vinil, passatempo mais recente do teu sobrinho que descobriu a maravilha da imperfeição por oposição à assepsia digital dos discos compactos, e ter encontrado um álbum dos Platters onde figura, entre outras preciosidades o velhinho "Only You".

Era a canção preferida do nosso pai. A única e a primeira que lhe ocorria quando instado a responder à velha e pouco original questão: "Qual é a tua música preferida?" O texto teria pouco interesse se ficasse por aqui. O que me interessou mais foi indagar, à laia de explorador dos recantos da mente, o mundo de referências que a música contém...

Não se trata só de uma canção de amor. Trata-se de uma canção de amor e exclusividade. A mesma exclusividade que os nossos pais reservaram um para o outro. A dedicação única de uma vida. Mais, trata-se de uma canção de amor na década de cinquenta que invadiu a de sessenta! Trata-se de um tema que marcou uma forma de estar. Noites no clube de baile, orquestras ao vivo, cigarros despreocupados, saias de roda ao som do twist, e, claro, um "slow" partilhado, uma mão na cintura, a outra mão numa mão à espera de fechar-se nela e as emoções todas de uma noite de estórias a contar pela vida fora. Vivacidade e energia nas associações recreativas... o ARA! lembras-te do ARA? Associação Recreativa do Amboim. O ARA era um desses lugares mágicos onde se entrava inocente e saía dançante. Um lugar onde a magia das noites mágicas acontecia na vida das pessoas. A primeira mão dada, o primeiro pedido de namoro, a primeira autorização da figura paterna, aquele fundamental, inesquecível primeiro beijo...

Os Platters condensaram tudo isto, todo este mundo de vivências, em dois minutos e quarenta segundos. Sabes mana, eu acho que o pai não ouvia a canção. Ele vivia-a. E revivia a sua própria e extraordinária vida. E eu, agora, venho revivê-la contigo. A dele e a nossa com ele! Assim, como que a querer fintar a inexorabilidade do tempo, a fugacidade dos dias. Sentindo e ouvindo os Platters de novo!

Beijo,
Mano.


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