Levanta-te e anda!

[Neste mês, tem início efectivo a guerra do Iraque. A Internet atinge os 500 milhões de utilizadores. As Nações Unidas criam um site para apoiar a Década da Alfabetização, que se desenrola de 2003 a 2012. Explicitando o conceito de literacia utilizado, afirma-se: "Literacy is about more than reading and writing - it is about how we communicate in society."

Data da primeira publicação: 28 de Fevereiro de 2003]

Levanta-te e anda!
Olá mana,

Há uns tempos prometi-te um mail mais animado do que os últimos. Algo menos soturno e com uma nota de esperança… Acolheste a ideia de bom grado mas não conseguiste deixar de franzir o sobrolho como que duvidando da possibilidade de tal cometimento. Sabes, de certa forma tens razão. O Inverno vai frio e agressivo, as catástrofes naturais abatem-se sobre a Humanidade, os aviões caem como moscas, o espectro de uma guerra inútil tolda-nos os dias, a nossa lusitana sociedade afunda-se em escândalos e desesperos de onde emerge, inexoravelmente, a podridão inerente a décadas de desinvestimento na educação e nos valores morais e já nem temos a força e a pureza que nos levaram, em tempos, a traçar no espaço um corado manguito… não pode ser, podia estar uma televisão a ver! Tudo isto é consequência directa, a mim me parece, da “visibilidade”. O nosso mundo, a nossa sociedade e as nossas interacções estão cada vez mais expostas e desgastadas. O interessante é que fomos nós mesmos quem promoveu a visibilidade como um valor. Demos demasiada importância ao verbo “aparecer” e esquecemos, aos poucos, os saudosos “pensar”, “agir”, “partilhar”. Hoje, somos intervenientes sociais no sofá da sala com um comando a distância e um telemóvel. Cidadãos de sms, cidadãos de sondagens de opinião… e cada vez há mais sondagens e menos opinião!

Mas aí reside o milagre. Arranquei à memória do passado e aos factos do presente um motivo de esperança. Lembro para nós a madrugada pérfida em que o pai teve o primeiro enfarte, lembro a mãe a ampará-lo escada abaixo e lembro depois onze anos de calvário entre a nossa casa, seu castelo-forte-de-ter-a-donzela, e o Hospital Universtário de Coimbra, seu castelo-forte-de-se-manter-vivo. Lembro que naquela tão criticada e malogradamente jornalada e televisionada instituição o pai não era o pai, era o senhor Videira e os funcionários não eram aquele nem este. Todos tinham nome próprio e usavam-no. Lembro o carinho, a dedicação. Lembro o desvelo e o profissionalismo. Lembro que, para o pai, ir para o hospital não era ir para o hospital, era passar uns tempos na sua segunda casa. Lembro a cumplicidade de deixar ficar as visitas um minutinho mais… E pergunto: porque não apareceu tudo isto nos jornais e nas televisões? Porquê a relutância de gritar bem alto a solidariedade e a capacidade de fazer e ser bem que este humano Ser ainda cultiva?

E da névoa do passado vim aos trambolhões, memória abaixo, até desembocar à porta da unidade de fisioterapia do Hospital Rainha Santa Isabel em Torres Novas, coxo, de gesso recentemente tirado e apoiado em duas simpáticas muletas. E que vi eu? Vi uma unidade bem equipada de máquinas, aparelhos e recursos de pôr a boca aberta. Mas mantive-a fechada para a abrir depois, quando vi o trabalho, quando vi a dedicação. O carinho no massajar dos pulsos da senhora Maria, septuagenária de braço ao peito. O tom de voz de animar almas desconfiadas dos corpos que as guardam. O partilhar da dor, o incentivo, a cumplicidade entre terapeutas, auxiliares e pacientes. Por momentos julguei que éramos toda uma família e estaríamos juntos à mesa do jantar! Um dia ouvi um terapeuta dizer, inconsciente do poder bíblico e passado das suas palavras, “Ó senhor Manuel, levante-se e ande!” E o Homem, admirado consigo mesmo, levantou-se e andou. Passaram-me as dores e os emperros mas ainda lá voltei dois dias só para saborear a humanidade, só para ver a esperança, só para voltar a acreditar no meu semelhante. Ali, o profissionalismo e a dádiva são um só e o mesmo. Para quando, mana, estas coisas nos jornais? Para quando, mana, estas coisas a abrir o jornal das oito e a agitar o espírito confuso e conturbado dos nossos irmãos portugueses? Para quando esta humanidade para sempre?

Beijo,
Mano.

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