Deixa-te estar, Mariana!

[Uma sondagem da Marktest para o DN e TSF, relativo a Março de 2003, apresenta as preocupações e prioridades dos portugueses, que se posicionavam do seguinte modo: - Desemprego (28%) - Listas de espera na saúde (25%) - Equilíbrio das contas públicas (14%) - Paz social (9%) - Violência (8%) - Qualidade da educação (7%). A Federação Internacional de Jornalistas exige um inquérito imediato e completo à agressão e detenção de um jornalista e um câmara da RTP e dois outros profissionais israelitas pelas tropas da coligação anglo-americana no Iraque.

Data da primeira publicação: 14 de Março de 2003]

Deixa-te estar, Mariana!

Olá manita,
Dos cristais da minha memória há um mais cintilante. Os teus olhos de azeitona pequeninos e escuros com a malandrice toda a espreitar. O teu sorriso a acompanhar aquele meio milagre para fazer um milagre inteiro. E recordo, como que a querer ressuscitá-lo, um espírito tenaz e audacioso que espreitava por essas janelas da alma, de vontades decididas e orgulhos silenciados. O que tinhas de fazer fazia-lo mais tarde ou mais cedo. Arriscavas todos os dias e todos os dias ganhavas, quanto mais não fosse, vida! Sempre fui mais normativo. A minha coragem manifestava-se em grandes cometimentos que sobressaíam por serem excepção, a tua era quotidiana, estava em ti como uma segunda pele. De vez em quando, como todos os miúdos nas vidas todas, fazias das tuas e eras chamada à presença forte, segura e autoritária do pai. Não que ele alguma tivesse tido vontade de repreender-te, não. O pai tinha uns olhos-mágicos-de-ver-mais-o-que-é-bom e a sua postura de pater famílias educador e rígido quase não resistia aos teus olhitos e torna-se interessante relembrar, hoje, como David nem precisava de funda para derreter Golias. Mas o dever da educação impunha uma repreensão e ela surgia mais ou menos convincente. E tu, de pescocito inclinado, pregavas a vista no chão, coravas, formava-se-te um caroço na garganta, entaramelava-se-te a língua e só eras capaz do silêncio. O silêncio do respeito-temor. É aqui que quero deixar-te por agora, braços estendidos ao longo do corpo, o peso da culpa, do respeito e do medo a tombarem-te os olhos para o chão.



Os anos passaram e surgiram outras psicologias, outras psicopedagogias, outras pedopsicologias e outras tantas orgias intelectuais marcharam contra o medo de se ser menino, arrasaram o temor e levaram na enxurrada o respeito! E as crianças deixaram de o ser demasiado cedo, demasiado cedo tiraram os olhos do chão, demasiado cedo desafiaram autoridades que não eram para desafiar, demasiado cedo conquistaram direitos, atitudes, vontades para demasiado cedo se perderem as crianças. E os pais ficaram de braço no ar, a meio caminho de uma palmada, repartidos entre a ancestral força de uma punição e a moderna culpa de um trauma psicológico! E assim andamos pelas ruas e assim vivemos em casa: os pais de braço indeciso no ar e os filhos desprovidos da inocência de se ser criança, a saberem muito de amores e paixões, a saberem demasiado de contas ao fim do mês, a saberem bué de como responder, de como levantar os olhos em desafio, de ingenuidades perdidas antes do tempo. E a saberem pouco de jogar ao arco, de saltar ao eixo, de deixar o mundo dos crescidos para os crescidos, de pôr os olhos no chão na ingenuidade pura do respeito-temor.

Escrevo-te estas coisas porque me alegrei há dias com a Mariana. Da amálgama de miúdos que me vêm ter à sala de aulas todos os anos, que me tratam por “setôr”, que se empertigam vontades de ser homem aos doze/treze anos, que se insinuam desejos de ser mulher à saída da infância, emergiu um par olhos negros como os teus, um sorriso como o teu e quando chamei, autoritário, “Mariana!”, ela pôs os olhos no chão como tu fazias, corou! Estive quase para emendar a mão e adoçar o tratamento mas lembrei-me da raridade que é esta ingenuidade de ser menino, este filão de viver o tempo certo no tempo certo e calei-me. “Deixa-te estar, Mariana! - troquei com os meus botões - deixa-te estar que tens aí um tesouro de viver”.

E voltei a ti, de frente para o pai, à espera da sentença. E que te disse ele? “Porta-te com juízo!” Portaste e foste brincar, foste crescer para um dia seres mulher e receberes um mail de recordar, por um momento, as deliciosas dores do crescimento!

Beijito,
Mano

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