A grande insolência

[Uma sondagem da Marktest para o DN e TSF, relativo a Março de 2003, apresenta as preocupações e prioridades dos portugueses, que se posicionavam do seguinte modo: - Desemprego (28%) - Listas de espera na saúde (25%) - Equilíbrio das contas públicas (14%) - Paz social (9%) - Violência (8%) - Qualidade da educação (7%). A Federação Internacional de Jornalistas exige um inquérito imediato e completo à agressão e detenção de um jornalista e um câmara da RTP e dois outros profissionais israelitas pelas tropas da coligação anglo-americana no Iraque.

Data da primeira publicação: 28 de Março de 2003]

A grande insolência

Olá mana,
Hoje estou particularmente bem disposto e nem sei porquê que é quando sabe melhor estar bem disposto.
Hoje quero lembrar-me de ti por ti num esforço de me substituir à tua própria memória. Bem sei que será impossível pois ninguém vive a vida de ninguém como o próprio, mas fica a tentativa.
Algures num dia invernio em plena quadra natalícia, aproximavam-se as férias do Natal. Já lá vão mais de vinte anos e Coimbra era menos cidade e mais aldeia dos arredores de si mesma. Em quase todo o lado havia grelos à venda e o comércio tradicional, vital como nunca, oferecia uma variedade inusitada de cores para a vista, melodias para o ouvido e sonhos para a alma. Numa sala de aula de uma das últimas aulas em que o professor Madeira percorreu o calvário de te aturar a ti e aos teus colegas com a paciência e o carinho que acompanharam a memória dele, estavam os teus olhitos pretos. Muito ávidos de coisas novas, bastante curiosos, alegres e sempre, sempre, irrequietos. Se bem nos lembramos, por aqueles dias tu querias viver cada dia como se fosse único, enfrentar todos os problemas e, acima de tudo, estavas disposta a aceitar todos os desafios. Ora, foi num esforço, voluntário e são, de te superares a ti mesma e, claro, deixar bem visto o professor, mais do que a ti própria, que aceitaste o desafio antes que qualquer outro o pudesse fazer.
- Quem quer cantar uma cantiga de Natal?
- Eu senhor professor, eu... eu!

Minutos depois ele não teria feito a pergunta. Anos depois tu não terias aceitado o desafio. Por mim, no ofício egoísta das memórias, congratulo-me com a ideia de ele não ter sabido antes o que soube depois e de tu não teres visto antes as barreiras e as distâncias que verias mais tarde. E cantaste envolvida e sonora, com a voz mais cristalina, mais genuína que o teu coração soube soltar:
- ginglobel, ginglobel, já não há papel
Não faz mal, não faz mal, limpa-se ao jornal!

pois... já tens o pobre professor Madeira de todas as cores do universo, muito indeciso, na sua benevolência e bondade cristãs, próprias de um verdadeiro pedagogo, entre a aceitação do gesto franco e voluntarioso e os ditames morais e educativos por que também se regia e que queria mostrar-te mas não sabia como. O senhor lá entaramelou qualquer coisa sem te ofender a dedicação de aluna mas apelando para o que quer que houvesse em ti que pudesse evitar outros momentos de tão embaraçosa, para ele, claro, dedicação!
Convém aqui lembrar em abono dos teus predicados vocais que, muito melhor do que a cantiga de Natal, era aquela que entoavas lá em casa à porta do quarto dos pais para onde fugias, acabada a sessão, a esconder a cara, vá-se lá saber por imperativo de que pudores. Virada para a sala muito empertigadita e com o peito cheio de ar e orgulho no feito que se aproximava:
- sandokan, sandokan
Não tem cuecas nem sutiã!

Voltavas, espreitando, a meia face, para a sala, para ouvires o aplauso ruidoso da mãe e da mimi e a festa silenciosa do pai em olhares que só tu e ele percebiam.

Que eu me lembre, de todo o teu percurso escolar, pelo menos até acabares o secundário, o ginglobel foi a tua grande insolência!

Quis o destino, mais ironia, menos ironia, que abraçássemos os dois essa profissão que ainda há pouco deixou o professor Madeira embaraçado. Se ele te visse numa sala defronte de uma turma haveria de achar piada! Talvez pedisse para cantar uma cantiga!

Há dias lembrei-me do teu ginglobel quando ouvi na televisão esta expressão que agora usei: grande insolência. Alguém, a propósito de um miúdo com a tua idade de há vinte e tal anos berrava assustado a sua indignação e proclamava estas duas palavras como se fossem as últimas pedras que tinha para acabar de enterrar um cachopo sem modelo masculino em casa e com menos de metade do dia para partilhar com a mãe, todos os dias, quase todas as semanas há já tantos anos que ele não se lembra, por certo, da última vez em que o seu nome foi pronunciado sem ser cuspido. Nem sequer vou cair no dolo de entrar em considerações que nos levem para o sistema educativo, para as falhas e razões dos professores, para as falhas e razões dos pais, para os ministérios, para as reformas, para os dinheiros, nesta floresta, então, nem vale a pena pensar em entrar.

Fico-me, na humildade do meu pensamento, por uma interrogação. Que raio aconteceu de lá para cá? Que aconteceu de tão grave que o mesmo filme tenha de implicar agora cadeiras e vidros partidos, agressões para todos os gostos com e sem armas, que aconteceu para que a tua insolência fosse destronada por palavrões e pontapés, que aconteceu para que o embaraço do professor Madeira fosse substituído por conselhos disciplinares e expulsões, que aconteceu para que o palco de aprender fosse pasto das televisões?

Não julgo. Penso.
Penso que estamos todos, na generalidade, menos humanos.

Não culpo. Constato.
Constato que os miúdos crescem nas filas de trânsito, nas filas das caixas registadoras dessas grandes superfícies tão exíguas para a alma humana. Constato que já lhes não pedimos para fazerem nada com as suas próprias mãos. Compram. Constato que já não há desencontros porque os telemóveis mantêm toda a gente em contacto. E depois? Onde ficam as aventuras e as histórias dos desencontros? Constato que lhes colocamos na mesa defronte para a televisão quatro ou cinco comandos a distância para comandar aparelhos que estão pouco mais do que ao alcance da mão. Constato que tudo parece fácil mas, mesmo acreditando que não está mais difícil, tudo continua a ter dificuldades. Constato um paradoxo: como é possível ensinar a superar dificuldades a crianças que educamos na ilusão de que elas não existem? Como é que estas crianças aprendem a sofrer? Constato, depois, triste, a ausência de resistência à frustração, a indignação, o choro, a revolta, a insolência, a violência.

Não calo. Digo
Digo que envolvemos as nossas crianças e os nossos jovens em processos desumanizados de crescimento e lhes exigimos de volta a normalidade, o que quer que isso seja. Digo que os abandonamos, que não os acariciamos o suficiente, digo que não sentem, quanto deviam, o nosso calor e a nossa presença, digo que somos, na generalidade pais e mães de um percurso irregular; parimos à pressa, trabalhamos à pressa, amamos à pressa, ensinamos à pressa e queremos que os nossos filhos sejam calmos e tenham condutas de comportamento adequadas à nossa educação! Não à deles, claro!
Esta é, mana, sem dúvida, uma grande insolência!!

E recordo, com carinho:
ginglobel, ginglobel....
Beijo, mano

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