Data da primeira publicação: 11 de Abril de 2003]
A senhora Deolinda
Olá manucha,
Bem sabes que, ao meu modo, sou um tanto subversivo, do género contrariar correntes, tentar a impossibilidade de pensar o impensável, roubar à memória o que ela tem e não tem para me dar… talvez por isso ou, quem sabe, por um humano impulso de sobrevivência fujo, no auge da guerra, ao assunto e venho memorar o entendimento! De alguma forma sinto que falar da guerra é alimentar a chama de uma fogueira que todos queremos extinta.
Bem sabes que, ao meu modo, sou um tanto subversivo, do género contrariar correntes, tentar a impossibilidade de pensar o impensável, roubar à memória o que ela tem e não tem para me dar… talvez por isso ou, quem sabe, por um humano impulso de sobrevivência fujo, no auge da guerra, ao assunto e venho memorar o entendimento! De alguma forma sinto que falar da guerra é alimentar a chama de uma fogueira que todos queremos extinta.
Algures, numa rua da Coimbra da aurora da década de setenta, um raio de sol vespertino bate numa vidraça e aquece uma salinha pequena e enorme. Uma cama e uma máquina de costura daquelas compridas com muitas agulhas e fios enevoam-me a memória. Dos adereços sem vida nada mais me ficou. Mas ficou-me o cheiro do café com leite, ficou-me o sabor das infindáveis torradas da Senhora Deolinda. Ficaram-me as histórias contadas como quem revela segredos, ficou-me o saber rural de quem faz perguntas mais para espicaçar a capacidade de resposta do que para testar o que quer que seja. E afinal a sua salinha não era só uma salinha, era um mundo de comunhões, eram tardes longas a perder da vida, era uma senhora viúva e uma criança de olhos vendados pela ingenuidade própria num entendimento que superava as diferenças de idade, as culturais, as cognitivas, as meta-cognitivas, os saberes experienciais, os pedagógicos, a psicologia educacional e a pedo-psicologia! E, no entanto, aprendi.
Hoje, as casas das pessoas são mais arrumadas, mais limpas e mais plásticas. Há armários, gavetas, caixas e caixinhas que servem para arrumar a desarrumação que nos ajudava em tempos a aprender porque mexíamos nas coisas. E como estão as casas, tendem, por reflexo do estilo de vida, a estar as ruas. Já reparaste que são bem menos as crianças na rua? Já reparaste que são bem menos os idosos na rua? Providenciámos-lhes caixas com todas as condições: a umas chamámos infantários e às outras lares! Olha-me a ironia deste nome: tiramo-los dos seus lares para os colocar nos lares. O mais grave é que neste arrumar cómodo de gentes que estorvam e empecilham o quotidiano separámos os Paulinhos das Senhoras Deolindas. Tirámos aos velhos a glória de ver crescer quem lhes sucedeu e roubámos aos novos o ofício de aprender com quem sabe de viver a vida. Não a vida dos tratados, das teses, das teorias e de quem sabe da vida, só a vida de quem a viveu e sabe de viver a vida. Já viste como são as coisas? Anda uma pessoa oitenta e tal anos a aprender a vida e quando podia ensinar um poucochinho dela é encarcerada num lar para seu bem! As ruas estão limpas, estão assépticas e estão estéreis! Os Paulinhos estão sentados no chão de um infantário a tentar enfiar um cubo dentro de uma caixa pela abertura correspondente, as senhoras Deolindas estão no lar a ver televisão, inertes e sem comunicar o mundo de maravilhas, milagres e dificuldades que teriam para ensinar a quem as quisesse ouvir. Os netos crescem sem nunca terem ouvido os avós, agentes naturalmente reguladores dos defeitos e dos excessos cometidos pelos pais.
E é por isto que te escrevo hoje, para relembrar a alegria de uma criança e de uma senhora viúva em torno de uma história e um pires de torradas. Aprendi o toque aveludado das suas mãos rugosas de trabalhar o campo e é como se sempre tivesse sido um camponês e soubesse os preceitos e os desvelos que a terra exige. Aprendi a doçura da sua voz e é como se sempre tivesse querido ser pacífico e calmo e nada mais fizesse sentido senão a Paz, aprendi a malandrice do seu sorriso e a maravilha das suas histórias e é como se sempre tivesse vivido aventuras de espantar. Aprendi o respeito do luto que, na altura, era para sempre. Aprendi a calma das tardes longas e aprendi que todas as coisas durante o dia têm uma ordem e um momento e aprendi, como a raposinha do Saint Exupéry, a esperar por cada momento. Mas houve uma coisa mais importante que as outras todas que a Senhora Deolinda me ensinou: quando, numa tarde morna, o sol preguiçoso e amarelado nos visita pela vidraça e convida a imaginação a desbravar mundos não há nada melhor do que uma chávena de café com leite e torradas, muitas torradas.
- Senhora Deolinda dá-me mais “tarradas”!
Beijo
Mano