A senhora Deolinda

[A evocação da Revolução de 25 de Abril adquire, este ano, uma carga diferente dos anos mais recentes. Em primeiro lugar porque se prevê que o Presidente da República se pronuncie sobre a posição de Portugal no plano internacional, depois da aproximação do Governo à linha estratégica dos Estados Unidos da América. Mas também porque foram vários os colunistas dos media a sugerir uma analogia entre o que se passou em Bagdade, com a queda do regime de Saddam Hussein, e o nosso 25 de Abril de 1974. O secretário de Estado norte-americano Colin Powell justifica a morte do jornalista Jose Couso no Hotel Palestina, em Bagdade, numa carta que envia ao seu homólogo José Maria Aznar. Em 26 de Abril de 2003,J. M. Paquete de Oliveira escreve no Jornal de Notícias: "Vai murcho, muito murcho, este Abril de Portugal. Chega-se ao limite de Otelo elogiar Saddam ou não condenar Fidel. E por isso à aberração da "arquitectura mental" de José António Saraiva escrever no "Expresso" o que a liberdade de opinião permite, mas que o "Expresso", pelo que tem feito pela liberdade, não merecia".

Data da primeira publicação: 11 de Abril de 2003]

A senhora Deolinda

Olá manucha,
Bem sabes que, ao meu modo, sou um tanto subversivo, do género contrariar correntes, tentar a impossibilidade de pensar o impensável, roubar à memória o que ela tem e não tem para me dar… talvez por isso ou, quem sabe, por um humano impulso de sobrevivência fujo, no auge da guerra, ao assunto e venho memorar o entendimento! De alguma forma sinto que falar da guerra é alimentar a chama de uma fogueira que todos queremos extinta.

Algures, numa rua da Coimbra da aurora da década de setenta, um raio de sol vespertino bate numa vidraça e aquece uma salinha pequena e enorme. Uma cama e uma máquina de costura daquelas compridas com muitas agulhas e fios enevoam-me a memória. Dos adereços sem vida nada mais me ficou. Mas ficou-me o cheiro do café com leite, ficou-me o sabor das infindáveis torradas da Senhora Deolinda. Ficaram-me as histórias contadas como quem revela segredos, ficou-me o saber rural de quem faz perguntas mais para espicaçar a capacidade de resposta do que para testar o que quer que seja. E afinal a sua salinha não era só uma salinha, era um mundo de comunhões, eram tardes longas a perder da vida, era uma senhora viúva e uma criança de olhos vendados pela ingenuidade própria num entendimento que superava as diferenças de idade, as culturais, as cognitivas, as meta-cognitivas, os saberes experienciais, os pedagógicos, a psicologia educacional e a pedo-psicologia! E, no entanto, aprendi.

Hoje, as casas das pessoas são mais arrumadas, mais limpas e mais plásticas. Há armários, gavetas, caixas e caixinhas que servem para arrumar a desarrumação que nos ajudava em tempos a aprender porque mexíamos nas coisas. E como estão as casas, tendem, por reflexo do estilo de vida, a estar as ruas. Já reparaste que são bem menos as crianças na rua? Já reparaste que são bem menos os idosos na rua? Providenciámos-lhes caixas com todas as condições: a umas chamámos infantários e às outras lares! Olha-me a ironia deste nome: tiramo-los dos seus lares para os colocar nos lares. O mais grave é que neste arrumar cómodo de gentes que estorvam e empecilham o quotidiano separámos os Paulinhos das Senhoras Deolindas. Tirámos aos velhos a glória de ver crescer quem lhes sucedeu e roubámos aos novos o ofício de aprender com quem sabe de viver a vida. Não a vida dos tratados, das teses, das teorias e de quem sabe da vida, só a vida de quem a viveu e sabe de viver a vida. Já viste como são as coisas? Anda uma pessoa oitenta e tal anos a aprender a vida e quando podia ensinar um poucochinho dela é encarcerada num lar para seu bem! As ruas estão limpas, estão assépticas e estão estéreis! Os Paulinhos estão sentados no chão de um infantário a tentar enfiar um cubo dentro de uma caixa pela abertura correspondente, as senhoras Deolindas estão no lar a ver televisão, inertes e sem comunicar o mundo de maravilhas, milagres e dificuldades que teriam para ensinar a quem as quisesse ouvir. Os netos crescem sem nunca terem ouvido os avós, agentes naturalmente reguladores dos defeitos e dos excessos cometidos pelos pais.

E é por isto que te escrevo hoje, para relembrar a alegria de uma criança e de uma senhora viúva em torno de uma história e um pires de torradas. Aprendi o toque aveludado das suas mãos rugosas de trabalhar o campo e é como se sempre tivesse sido um camponês e soubesse os preceitos e os desvelos que a terra exige. Aprendi a doçura da sua voz e é como se sempre tivesse querido ser pacífico e calmo e nada mais fizesse sentido senão a Paz, aprendi a malandrice do seu sorriso e a maravilha das suas histórias e é como se sempre tivesse vivido aventuras de espantar. Aprendi o respeito do luto que, na altura, era para sempre. Aprendi a calma das tardes longas e aprendi que todas as coisas durante o dia têm uma ordem e um momento e aprendi, como a raposinha do Saint Exupéry, a esperar por cada momento. Mas houve uma coisa mais importante que as outras todas que a Senhora Deolinda me ensinou: quando, numa tarde morna, o sol preguiçoso e amarelado nos visita pela vidraça e convida a imaginação a desbravar mundos não há nada melhor do que uma chávena de café com leite e torradas, muitas torradas.
- Senhora Deolinda dá-me mais “tarradas”!

Beijo
Mano

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