Bons Malandros

[Pacheco Pereira publica no Público, a crónica "O Iraque É Também Nossa Responsabilidade". Realiza-se, em Lisboa, a segunda "Marcha do Orgulho Gay" que, segundo o Diário de Notícias, tentou desfazer a associação ao escândalo Casa Pia. A AOL Time Warner Foundation anuncia, após realização de um inquérito que para além de ler, escrever e contar, a alfabetização do século XXI deveria possibilitar aos jovens aprender novas competências que há 20 anos não eram tidas como essencias. O CDS-PP desiste do projecto v-chip para controlar a violência e a pornografia na televisão. Fátima Felgueiras dá uima polémica conferência de imprensa no Rio de Janeiro. O Porto vence (1 - 0) a União de Leiria e conquista a Taça de Portugal.

Data da primeira publicação: 27 de Junho de 2003]

Bons Malandros
Querida Mana,
Lembras-te de como te li a “Crónica dos Bons Malandros”?
No quarto em que partilhávamos o quotidiano, no mesmo quarto em que adoecíamos e recuperávamos juntos, naqueles nove metros quadrados de partilha em que trocávamos segredos e brincadeiras. Foi lá que abri, desconfiado, a crónica que se seguiria e que, sem saber, viria a mudar a minha vida. A cama tinha um dos lados encostado à parede coberta de papel de fantasia de fundo azul muito claro sobre o qual vadiavam umas florzinhas de um azul mais escuro e outras de cor-de-rosa como que a sugerir, esta combinação cromática, que o quarto não era teu nem meu mas dos dois. De muito grossa, a parede tornava-se fresca e eu oferecia-lhe as costas deixando o resto do corpo atravessar a cama até que os pés ficassem suspensos. E lembro-me de rirmos de satisfação com as venturas e desventuras das suas personagens. Lembro-me de voltar atrás em alguns parágrafos para os saborearmos de novo. O entusiasmo era de levar a mãe a chamar para mesa uma vez, duas e três e a refeição era apressada para voltarmos à aventura. O que eu realmente gostava e queria partilhar com todos à minha volta era a boa disposição, o imprevisto, o caricato e por vezes, porque não, o arrojo da linguagem que assumia traços de vernáculo. O fenomenal, para mim, era o contraste! Eu só não sabia defini-lo e traçar-lhe os contornos exactos mas apercebia-me claramente de que havia ali um contraste. Hoje percebo que residia, fundamentalmente, na antítese entre o formalismo e a seriedade como me apresentavam a Literatura na escola, sempre tão longe da vida, e a fluência de viver que aquele pequeno livro me escancarava à frente dos olhos, às portas da alma. Cheguei a estranhar alguma linguagem. Como era possível um livro ter a palavra “preservativo”, como era possível as personagens serem tão parecidas com as pessoas que se cruzavam comigo no caminho para a escola, tão humanas, tão cheias de defeitos? … Cheguei a duvidar ser Literatura aquele arrazoado de maravilhas surpreendentes que me faziam rir e comover e me impeliam a ler-te o livro.
Porquê estas recordações tantos anos depois? Por que me puxa a memória para um livro? A resposta é simples. A “Crónica dos Bons Malandros” foi, para mim, uma tomada de consciência. Foi o perceber e o apreender da Literatura como manifestação de vida, de toda a vida. Mais do que isso, a Literatura, para mim, deixou de ser uma manifestação de vida, passou a ser a própria vida. Os livros deixaram de ser textos muito bem escritos, sem erros, que senhores muito inteligentes e estudiosos, a que chamávamos autores, escreviam para que o resto da Humanidade pudesse aprender. Os livros e a leitura deixaram de ser, para mim, paradigmas do que é bom, perfeitamente dissociáveis de mim, do meu quotidiano, da minha família. A “Crónica dos Bons Malandros” integrou a leitura, a escrita, a minha vivência e colocou-os a todos no mesmo plano: o da vida. Afinal, havia pessoas boas que faziam coisas más, pessoas más que faziam coisas boas, havia mau cheiro e sujidade na Literatura, as personagens, surpreendentemente, falavam como se fala nas ruas, diziam palavrões, tinham sotaques, vestiam mal e o milagre, para mim, foi a perfeição residir no facto de a imperfeição estar por todo o lado. A Língua servia a sua configuração mais extraordinária: a Literatura. E esta, por seu lado, jamais poderia existir e continuar a maravilhar-me sem o serviço da primeira. Eu encontrara o casamento perfeito, vislumbrara uma união que jamais alguém conseguiria desfazer. O corpo e a alma, a palavra e a ideia, a mão e o gesto, a Língua e a Literatura! Por isso me arrepio, hoje, e, mais do que isso, me entristeço, quando oiço as defesas das mais modernas teorias pedagógicas que em nome da alfabetização e da competência linguística propõem ensinar aos jovens a Língua e a Literatura separadamente. Preocupo-me quando oiço pessoas preocupadas com a incompetência linguística e pensam estar a solução em dar mais atenção à Língua em detrimento da Literatura. Será que não vêem que este detrimento não existe? Onde aprender uma carta melhor do que em Pessoa ou Saramago? Onde compreender a estatística melhor do que em Gedeão? Onde aprender o manuseio da Língua melhor do que naqueles que o fizeram com a excelência da vida? Onde encontrar os segredos de uma pontuação extraordinariamente correcta e de uma frase maravilhosamente bem organizada melhor do que em Vergílio Ferreira.
O que eu percebi, mana, naquele dia em que me encostei à parede do nosso quarto e te li a “Crónica dos Bons Malandros” foi que há coisas que o Homem não pode separar porque estão unidas na sua natureza intrínseca, porque são elementos de uma mesma força. Alma e Corpo num só ser.
Aliás, que ofereceremos nós aos alunos que só aprenderem a Língua? Deixamos-lhes a ferramenta mas negamos-lhes o golpe de asa de que falava o poeta. E aos outros? Àqueles a que só ensinarmos a Literatura? Que lhes ofereceremos nós? Oferecemos-lhes o golpe de asa, o milagre da vida, mas vedamos-lhes o caminho para lá chegar…
Se isto chega acontecer, mana, começo a acreditar que os malandros são menos bons do que pensava!
Beijito,
Mano.

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