A Espera

[Christian Science Monitor, em prefácio ao novo livro de Todd Oppenheimer, 'The Flickering Mind- The False Promise of Technology in the Classroom', reflectindo sobre o impacto da tecnologia dos computadores nas escolas norte-americanas, afirma que "putting computers in classrooms has been almost entirely wasteful, and the rush to keep schools up-to-date with the latest technology has been largely pointless". Os novos programas de Português para o Ensino Secundário continuam a ser alvo de contestação: desta vez é a referência ao programa televisivo "Big Brother" num manual. A Alta Autoridade para a Comunicação Social (AACS) considerou uma prática ilícita "a intercepção de conversas telefónicas por iniciativa de jornalistas, seja em que circunstâncias for".

[Data da primeira publicação: 31 de Outubro de 2003]

A Espera

Olá mana,

Aproxima-se o dia 1 de Novembro, dia de todos os santos, dia que me acorda na memória rituais populares de recorte religioso e pagão. Pelo que me lembro, o frio mostrava-se forte mas quase sempre a chuva se encolhia e os dias abriam-se luminosos aos nossos desejos de uma jornada diferente. Pela manhãzinha, bem cedo, levantava-se a mãe e preparava o farnel da diversão. Pratos, talheres, copos, guardanapos, uma toalha estampada de frutos e algumas coisas menos comuns como um frasquinho com um pouco de detergente e uma cafeteira de café, um saquinho com um punhado de sal e duas folhas de louro. Juntava os embrulhos e os sacos e colocava-os ao cimo das escadas. Pouco depois juntava-se-lhe a Mimi e os gestos de preparação multiplicavam-se por dois. Por fim, eu, tu e o pai acordávamos para o dia com os corações à espera de coisas diferentes, de risos mais abertos, de momentos que sabíamos iam acontecer mas surgiam sempre renovados. São assim os rituais. Oferecem-nos a certeza das coisas que se repetem sem surpresas e a surpresa de se repetirem sempre diferentes. Todos no carro, lá íamos pelas curvas da conversa, pelo timbre entusiasmado das vozes a caminho de um dia diferente. Olhávamos o rio, as árvores e tudo transpirava harmonia. Comentávamos as mesmas filas de trânsito, discutíamos sempre onde teríamos assentado arraiais no ano anterior e acabávamos por ficar no mesmo local ainda que alguns de nós afirmassem que não havia sido bem ali. Chegados à Feira de Santa Quitéria iniciava-se o jogo de visita aos vendedores. O melhor pão aqui, a melhor carne ali, as morcelas, o chouriço e, claro, umas quantas castanhas para assar. Parávamos com frequência para cumprimentar outras famílias que, assim, fora da azáfama do quotidiano, pareciam mais felizes e bonitas.
Iniciava-se, depois, um ritual interessante. Era o acender do lume, o temperar das carnes, o retalhar das castanhas e outros pequenos gestos que acompanhavam a felicidade de estarmos a preparar uma refeição ao ar livre. O pai fumava um cigarro de contemplação, a Mimi desvendava os segredos de uma culinária empírica e, sem dúvida, extraordinária e a mãe garantia o sucesso da operação com a sua eficiência e a sua capacidade de trabalho mesmo quando já todos estávamos cansados. Nós corríamos monte acima e monte abaixo em aventuras de imaginosos contornos ou, se o frio apertasse muito, embrulhávamo-nos numa manta e ficávamos a ver como era bom estar quentinho com o frio à nossa volta. As conversas impunham-se, depois, com o cheirinho do café a dominar os ares e repetiam-se nos temas e nos assuntos. Os olhos de todos nós brilhavam mais, as vozes eram mais tranquilas e o coração dos homens abria-se mais para dar do que para receber.

E, nisto tudo, onde fica a espera? Porque venho falar-te de uma espera e ainda nada disse sobre ela? Por tradição e até por questões semânticas, a espera movimenta-se nos anéis da paciência e esperar é, de alguma forma, ter paciência, quiçá, capacidade de sofrer. Esperar é dar duas vezes. É dar a presença e dar o tempo de aguardar outra presença, uma que nos complete. Muitos dizem que não gostam de esperar nem de fazer esperar. Pobres! Duplamente pobres! Se não gostam de esperar é porque nada há que valha a pena a sua dádiva pessoal da paciência, do aguardar pelos que nos completam. Se não gostam de fazer esperar é porque não acreditam que possa haver quem queira sentir a sua falta por momentos para, pouco depois, a sentirem completada com a presença. Por vezes, penso mesmo que, se não houvesse espera, a presença não faria o mesmo sentido… tornava-se um petisco insosso, um dia sem sol, uma noite sem lua. E por que esperávamos nós nesses dias de todos os santos que foram levados na enxurrada do tempo e de que resta agora só o escolho da memória? Se bem te lembras, assim que saíamos de casa, o pai passava pelo cemitério. A Mimi comprava umas flores, entrava no recinto e nós esperávamos. Sentados, em silêncio, sem muito o que dizer uns aos outros, sentíamos um pequeno adiar das alegrias que estavam para seguir-se mas esperávamos sempre. Nunca contrariávamos aquele ritual de espera e de respeito. Era como se o silêncio dos silenciados falasse mais alto. Era como se se impusesse um respeito secular que não sabíamos bem de onde vinha mas que nos não atrevíamos, sequer, a questionar. É interessante pensar que passamos uma vida a tentar que nos oiçam, a tentar encontrar um lugar para estarmos e a tentar encontrar alguém que espere por nós, sempre! E é curiosamente quando superamos a fronteira fina e frágil da morte que o silêncio dos outros permite que fale a voz do que fomos, que conquistamos todos os espaços que ansiávamos e, mais do que isso, é quando partimos para não voltar que os outros encontram tempo para esperar! “Mísera sorte, estranha condição”.

No próximo dia um de Novembro estaremos juntos e subiremos, de novo, Santa Quitéria e eu venho propor-te que esperemos um pouco por duas das personagens que ocuparam estas linhas e que já tiveram a coragem de atravessar a fronteira. Um porque sabia fazer-se esperar no ofício de respeitar os que partiram. O outro porque esperava com a paciência e o respeito de quem abre o coração ao mundo para dar de si o que melhor de si encontrar!

Beijo
Mano.

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