O Suporte

[Christian Science Monitor, em prefácio ao novo livro de Todd Oppenheimer, 'The Flickering Mind- The False Promise of Technology in the Classroom', reflectindo sobre o impacto da tecnologia dos computadores nas escolas norte-americanas, afirma que "putting computers in classrooms has been almost entirely wasteful, and the rush to keep schools up-to-date with the latest technology has been largely pointless". Os novos programas de Português para o Ensino Secundário continuam a ser alvo de contestação: desta vez é a referência ao programa televisivo "Big Brother" num manual. A Alta Autoridade para a Comunicação Social (AACS) considerou uma prática ilícita "a intercepção de conversas telefónicas por iniciativa de jornalistas, seja em que circunstâncias for".

[Data da primeira publicação: 17 de Outubro de 2003]

O Suporte

Querida mana,

Cumprindo o prometido de há umas semanas atrás, venho oferecer-te, como quem dá uma flor a cheirar, o odor nostálgico da minha primeira memória. Presente agradável, talvez, como as flores e, certamente, efémero como a memória dos homens. Emerge do gesto a intenção clara de partilhar contigo algo que me é muito caro, muito precioso, pois representa para mim o princípio de tudo, a primeira de todas as coisas, a imagem primeira e a primeira sensação. Por egoísta que te possa parecer, a verdade é que não me interessa muito a teoria do “Big Bang”, o evolucionismo darwinista, e mesmo, com o devido respeito, Adão e Eva me dirão pouco a partir do momento em que me roubarem o que estou para dar-te. A brincadeira tinha-me esgotado as forças, o dia fora, decerto, repleto de aventuras e imaginações e o sono abatera-se-me pesado e algures no regresso adormecera no banco de trás. Sei que isto foi assim mas não me lembro de nada! A única e primeira coisa de que lembro é de ir, com os olhos fechados a subir as escadas para o primeiro andar. Levava o corpo todo inclinado para trás. Não fiques perplexa. Eu sei que uma pergunta te salta agora à mente: como é que um miúdo de dois anos e picos sobe escadas de olhos fechados e corpo inclinado para trás? A resposta é simples. Tinha uma orientação e, fundamentalmente, tinha um suporte. Uma mão forte e enorme, aberta e espalmada a ocupar-me as costas todas evitava a queda, orientava o caminho e, sobretudo, oferecia-me a força para subir. Pois… o quadro não é muito nobre, a primeira recordação de uma pessoa ser a subida de umas escadas. Mas, para mim, é nobre o suficiente. Mais tarde já os meus olhos viam pouco mais do que as raparigas a rondarem-me a alma e a ocuparem-me o tempo tive a mesma sensação. Teria, talvez, quinze anos. Estava doente. Necessitei de ir à casa-de-banho. Quando lá cheguei uma tontura tomou conta do mundo esfumado e toldado pela semi-inconsciência e tombei para trás. Ainda hoje penso que semelhante queda, assim, de corpo morto, a encontrar o duro do chão poderia ter sido fatal. Mas o meu suporte lá estava. A mesma mão a amparar-me as costas, a mesma força, o mesmo orientar. Parecia uma predestinação ter aquela mão comigo nos momentos chave. Uma coisa que eu sempre achei extraordinário no nosso pai foi a forma intuitiva mas incrivelmente oportuna como ele escolhia os momentos para nos tocar. Se bem te lembras não era homem de beijinhos e festinhas constantes, não era frequente, diria mesmo o contrário, era raro vê-lo dirigir-se-nos para nos abraçar mas… a ausência da quantidade nunca perturbou a eficácia da qualidade. Olhava-nos, falava-nos e tocava-nos exactamente quando precisávamos que o fizesse. É esse o discernimento que invejo e procuro. Como é difícil!

Um dia destes, esta minha primeira memória cruzou-se-me nas entrelinhas do cérebro com esta questão tão feia e melindrosa que nos assalta os lares todos os dias. A Pedofilia. Algo que me parece claro é que o sistema judicial português a que chamamos mais latamente e plebeiamente de justiça não funciona, funciona mal e, pelo menos, da suspeita já se não livra. Há pessoas que são presas e soltas. Outras há que são soltas e presas. Outras há que são só presas e também as há que nunca são presas. Tudo isto, depois, é alvo de uma série de combinatórias politico-sociais que emergem mais da nossa revolta de pais e cidadãos do que propriamente de raciocínios bem estruturados. Algo há, no entanto, que fica iniludível: ninguém ainda deu mostras de ter compreendido o critério. O critério moral, o critério religioso, o critério social, o critério político, o critério criminal, o critério… o critério… resta invisível e um dia destes vai-se a ver e a culpa de tudo isto era das criancinhas!!!

E porque te falo disto agora? Que tem isto a ver com a minha primeira memória? É o suporte, mana, é o suporte! Não podendo contar com a eficácia e rapidez da justiça temos de apostar no suporte. Temos de construir e ajudar a construir pais atentos, pais que se não distraiam, pais que, como o nosso, estejam lá quando os filhos precisarem mesmo que sejam poucas vezes. A nossa acção não se deve deixar levar pelo jornal das oito. O país não se pode decidir à hora do jantar. Os castigos pesados não serão sentenciados em directo se é que alguma vez serão sentenciados! Os autores do nojo nunca sentirão nojo porque não sabem o que o nojo é… resta-nos amparar as nossas crianças quando estiverem para cair, resta-nos apostar na família. Não tem de ser uma família de sangue. Basta que seja uma família de amor, uma família prevenida. Não precisa de ser uma família numa vivenda, basta que seja na escola, na igreja, num lar, na rua! Prevenida! Não são precisos tribunais inaptos nem advogados que dizem as mesmas coisas de maneira diferente, basta que haja uma mão aberta a orientar e a amparar aqueles que têm o direito de viver a inocência nos dias de inocência.

Um beijo grande,
Mano.

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