Mimi

[Christian Science Monitor, em prefácio ao novo livro de Todd Oppenheimer, 'The Flickering Mind- The False Promise of Technology in the Classroom', reflectindo sobre o impacto da tecnologia dos computadores nas escolas norte-americanas, afirma que "putting computers in classrooms has been almost entirely wasteful, and the rush to keep schools up-to-date with the latest technology has been largely pointless". Os novos programas de Português para o Ensino Secundário continuam a ser alvo de contestação: desta vez é a referência ao programa televisivo "Big Brother" num manual. A Alta Autoridade para a Comunicação Social (AACS) considerou uma prática ilícita "a intercepção de conversas telefónicas por iniciativa de jornalistas, seja em que circunstâncias for".
[Data da primeira publicação: 3 de Outubro de 2003]

Mimi
Querida mana,

Escrevo-te hoje sobre a Primavera, a Convicção e a Fé. Porquê? Não sei bem, talvez porque se aproxima o Outono, porque as convicções estão em falência e a Fé vai, a pouco e pouco, perdendo a força de outros tempos. Tempos em que era mais autónoma, menos justificada e mais justificação, menos imiscuída em assuntos da razão e da ciência e mais ligada àquilo a que realmente pertence: a nossa existência espiritual.

O dia não podia estar mais radioso como ainda o atestam as fotos que por cá ficaram a mostrar-nos que estamos mais velhos, gordos e sedentários. O Sol despontou com vontade de fazer sorrir os mais tristes, com ânsias de fazer acordar na nossa existência pequena e condicionada de humanos e terrenos vontades empreendedoras de ser melhor, de ir mais além... a felicidade talvez. É assim o astro rei: lembra-nos, por vezes, coisas que não sabíamos ter na memória, no espírito. A Ladeira de Santa Justa perdera o seu ar pedregoso e pardacento e a igreja com o mesmo nome exalava vozes, sussurros, passar atarefado de gentes que, de certo, preparavam algo. Mesmo os que a não frequentavam se aperceberam com facilidade que aquele Domingo não era só de missa sendo, bem entendido, que a missa nunca é só no que a quantitativas medidas diz respeito. É sempre uma festa, uma comunhão. Mas aquele dia era, sem dúvida, diferente. Subi a ladeira e entrei na igreja e lembro agora para nós o que minha mente registou então. Do escuro e do fresco sobressaía o branco. O branco das flores nos altares e nos bancos. O branco das fitas. O branco das camisas e o branco dos vestidos das meninas que faziam a primeira comunhão. De todas, uma me interessava em particular. Emergia-lhe a face morena de tanto branco, brilhavam os olhos negros que não escondiam alguma apreensão ou, pelo menos, a seriedade e a responsabilidade que o acto impunha. Estavas bonita, ali, de olhos postos em não sei quê, em nem tu sabes o quê. O inegável é que a Primavera entrara na igreja para ajudar à festa. Entrara com as flores, com os sorrisos abertos, com os olhares de esperança e com aquela pontinha de vaidade não pecaminosa que emanava dos familiares de vós todos. A convicção entrara contigo e com quem te guiara até ali com a sua voz alta e forte e convicta de fazer bem, com a sua forma franca e aberta de encarar a vida, de a abraçar, de a viver sempre de peito feito e intenções claras. Era daquelas presenças de encher salas vazias, de por a comunicar os mais tímidos e punha convicções em tudo o que fazia, até na forma com partia o pão para as torradas! E foi assim que esse se tornou num dia de convicções. As convicções do pastor que acredita no seu mais íntimo sentir que está a orientar para o melhor e a convicção do cordeiro que quer ser orientado.

Colocadas na ordem dos pensamentos a Primavera e a Convicção, falta dizer-te por que é que, para mim, esse foi um dia de Fé. A bem da verdade não se tratava da minha Fé, eu acordei bem mais tarde para esses caminhos da vida, tratava-se da tua Fé. Os professores tinham-me ensinado até então e mesmo depois disso que a Fé era uma coisa que se sentia mas não se via. Erraram. Humanos que são é natural que errem mesmo tendo o fardo pesado da responsabilidade de ensinar. E erraram porque nesse dia eu vi a Fé. Não sabia que a estava vendo, é certo, mas vi-a. Na altura senti uma coisa esquisita, assim como quem olha para a paisagem e não sabe o que está a ver mesmo estando perante ela. Anos mais tarde, quando o destino me deu esta missão formidável de ter um filho e ser obrigado a encontrar resposta para todas as perguntas, mesmo as que a não têm, sou surpreendido com esta: “Ó pai, o que é a Fé?”. E foi aí que senti o flash da memória escarrapachar-me diante dos olhos a tradução em letras garrafais do sentido daquela tua imagem forte e compenetrada de menina vestida de branco no terceiro lugar do quarto banco ao lado daquele teu colega loirinho com quem se dizia namoriscavas, mas, claro, tudo mentiras de quem gosta de se armar em Santo António e ver o casamento onde o não há. A Fé eras tu, ali, de branco, com olhos postos No melhor de ti que é isso que é Deus, o melhor que há em nós. A Fé é aquela força de querer seguir um caminho bom, de acreditar porque... se acredita, de acender uma velinha todas as noites durante mais de cinquenta anos, sem nunca falhar, para iluminar uma santa que só foi de barro quando lhe faltou a dedicação e desvelo de quem a iluminava. Ou se iluminava. Foste uma menina de sorte. E fui-o eu, também, por termos tido a oportunidade de partilhar o correr dos dias com a senhora que todas as noites punha uma velinha. Como deves calcular, eu não disse ao meu filho que a Fé eras tu! Mas a verdade é que és a minha primeira imagem de Fé, a minha aparição pessoal e egoísta e a ti fica-te a responsabilidade de honrares os sentimentos que despontaste.
O resto é assunto pessoal de cada um, a ser gerido por cada um. Mas ainda gostava de ver outra vez a Fé!

Talvez te fique uma questão na mente ao ler o atabalhoado destas linhas. Porque é que chamei “Mimi” a este texto. Tem a ver com a Primavera, com a voz de rouxinol impregnando os dias, com convicções de fazer as coisas, com Fé de viver. É só um nome. Um nome que tu conheces bem, melhor do que eu, até, e que espero se cruze na tua mente com as palavras que agora te deixo.

Um beijo grande,
Mano.

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