A mercearia do senhor Luís!

[Pacheco Pereira publica no Público, a crónica "O Iraque É Também Nossa Responsabilidade". Realiza-se, em Lisboa, a segunda "Marcha do Orgulho Gay" que, segundo o Diário de Notícias, tentou desfazer a associação ao escândalo Casa Pia. A AOL Time Warner Foundation anuncia, após realização de um inquérito que para além de ler, escrever e contar, a alfabetização do século XXI deveria possibilitar aos jovens aprender novas competências que há 20 anos não eram tidas como essencias. O CDS-PP desiste do projecto v-chip para controlar a violência e a pornografia na televisão. Fátima Felgueiras dá uima polémica conferência de imprensa no Rio de Janeiro. O Porto vence (1 - 0) a União de Leiria e conquista a Taça de Portugal.

Data da primeira publicação: 13 de Junho de 2003]

A mercearia do senhor Luís!

Querida mana,

Hoje trago-te memórias de imagens e odores dificilmente igualáveis. Há vinte e muitos anos atrás (anos do relógio, porque se se tratasse dos anos da cabeça eu diria que tinha sido há muitos séculos, noutras vidas), empoleirado na janela, eu via-te, pequenina, com uns calções amarelos de algodão e correspondente camisolinha de alças atravessar a rua de passo seguro após o prudente olhar para a esquerda e para a direita. O olhar para a esquerda era impelido pela força do ensinamento paterno, coadjuvada pelo hábito, mas perfeitamente inútil porque, como vim a concluir, consciente, anos mais tarde, a rua era de sentido único! Dirigias-te para a mercearia do senhor Luís. Lá dentro encontravas um balcão enorme de madeira já muito tratada pelo tempo, pelos avios, as satisfações e as arrelias de proprietários e clientes. Por trás do balcão erguia-se a figura enorme e cinzenta do senhor Luís, de bata pelo joelho, cabelos a reflectir o peso da idade na coloração de imitar a bata. A voz era pausada, a simpatia quanto baste, como convém nos negócios, as coisas faziam-se bem, não se faziam depressa. Mais ao fundo uma enorme estante a acompanhar toda uma enorme parede. Mercearias mais à mão, drogarias mais a fugir para o fundo do estabelecimento. Da altura da cintura para baixo não havia estantes mas uma fila infindável de depósitos para produtos avulso, cada depósito com sua tampa a fechar na diagonal. Dentro de cada uma destas arcas de madeira pousava uma medida ou instrumento de aviar e era raro que não chegasse à balança o peso já certo, pré-medido pela mão do tempo, pela prática da vida. Cá fora, pelo chão, havia sacas de batatas, cebolas, garrafões de vinho, vassouras encostadas à parede e todo o local parecia a recriação de um mercado inteiro incluindo o “comes e bebes” lá ao fundo a que se acedia por uma portinha e onde costumavam estar sempre os mesmos homens com os mesmos copos à frente que nós pressentíamos mas que, por um qualquer pudor não compreendido à altura nos eram vedados ao contacto da vista. O odor das especiarias e do açúcar amarelo misturava-se com o dos restos de Omo que caía, inevitavelmente, pelo fundo da embalagem de cartão, misturava-se com o aroma do café em grão, das cebolas, do vinho lá de dentro e entrar ali era despertar o olfacto com uma sinfonia complexa de ocidente e oriente, de passado e presente. A vista deixava-se enfeitiçar pelas cores das embalagens nas prateleiras, metodicamente arrumadas. E regressavas satisfeita com mais uma história para contar. Trazias o troco numa mão e, na outra, um embrulho que demorava mais tempo a fazer do que hoje uma operadora de caixa a despachar cinco clientes com dois carrinhos de compras cada um!

Ias e vinhas e parte do percurso não se via pela janela mas acreditávamos todos que tudo ia correr bem, havia esperança nos nossos corações. Nos dos pais pairava a confiança numa vida melhor, nos dos filhos a esperança de fazer coisas, de ser gente, de ser grande. Queríamos, todos, ser heróis de feitos inolvidáveis mesmo que começassem numa singela aventura até à mercearia do senhor Luís. Acontecia, mesmo, excedermos o que julgávamos inexcedível: íamos para a escola sozinhos e a pé! Atravessámos a cidade inteira para lá e para cá e era vida o que acontecia, e era Liberdade o que se realizava. O medo do Salazar, a suspeição, a dúvida e os olhares por cima dos ombros estavam, definitivamente, mortos. Levantavam-se as cabeças das pessoas para olhar em frente e percorrer um caminho melhor. Os adultos contavam histórias diferentes da mesma revolução que desembocavam todas numa palavra: Liberdade.
Hoje ligo a televisão e as palavras que dominam o quotidiano do meu filho são “arguido”, “pedofilia”, “peculato”, “suspeito”, “crime”, “prisão preventiva”. E vou buscá-lo à escola e já não há a mercearia do senhor Luís mas, mesmo que houvesse, não ousaria deixá-lo percorrer sozinho aquele troço do percurso que se não via da janela! Paira no ar um clima de suspeição, dúvida e desconfiança como no tempo de Salazar só que agora já não há Salazar! Que percurso traçámos nós a ponto de herdarmos o que não era para herdar? Que fizemos da Liberdade se o meu filho não pode, com a tua inocência de outros tempos, fazer o que fazias, de cabeça erguida e sorriso nos lábios, sem que eu tema: estará bem?
Um beijo amigo do mano

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